Capítulo 9

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A noite está clara, mas amargamente fria, com ocasionais rajadas de vento que varrem o fôlego direto dos meus pulmões. Decido que a trilha congelante cruzando o lago vale o uso do casaco do Kai, e, se depararmos com alguém enquanto carregamos um cadáver, tenho mais com que me preocupar do que com a moda. O bosque fica no lado mais afastado do lago, além da estrada principal, e caminhamos em silêncio, eu com as mãos vermelhas e arranhadas bem dentro dos bolsos e Ryujin mexendo os braços de vez em quando e fazendo meias piruetas uma vez aqui, outra ali. Conforme passamos mais tempo juntas, noto algumas características dela. Ryujin dança quando anda. Apenas alguns pulinhos e deslizes em determinados momentos. Seus gestos são granciosos, e às vezes ela fica em pointe, de modo casual, como se não percebesse o que está fazendo. Ela também fala de forma lírica. Seu padrão de discurso fica ritmado às vezes, e bate com os dedos e com os pés quando fica sentada, ou mesmo parada por muito tempo. Quando tudo está quieto, ela começa a cantarolar bem baixinho, e agora tenho de fazer shhhhh para ela vez ou outra, porque, se não fizer, a voz dela gradualmente aumentará até que esteja cantando alto, e, de repente, seremos pegas vagando pelo bosque com um saco cheio de ossos de gato, cantarolando melodias alegremente. E o que mais reparei nela é que ela tem algumas semelhanças com a Rosé, tipo a boca, o nariz e um pouco do olhar.

- Você tem certeza se que consegue encontrar o lugar onde o enterrou? - pergunto-lhe quando iluminamos o bosque escuro com nossas lanternas.

- Creio que sim - responde ela. - Havia pontos de referência. Um velho celeiro vermelho à direita, um trator abandonado à esquerda. Um pedregulho com as iniciais OHC entalhadas. Uma fita cor-de-rosa indicando propriedade e um marcador de trilha, e três árvores abaixo, as pedras.

Olho se relance para ela no escuro, com minha lanterna subindo e descendo, mas bem baixa.

- Boa memória.

-Bem, tive traçar o caminho de novo - explica ela.

Sigo a trilha sobre as raízes e as pedras, tomando cuidado para não escorregar nas folhas lisas e congeladas. A última coisa de que preciso é um machucado assim que a temporada de jogos começar. Damos a volta em um grande carvalho afundado com imensos galhos começando a apodrecer subindo do chão, e Ryujin para.

- Bem aqui - diz ela, apontando para o local.

Olho para o lugar que ela está indicando, mas não consigo ver nada ali. Ryujin segue caminho cruzando uma pequena clareira, seus tênis roçando com os pés e afastando as folhas incrustadas de geada, e então começa a remover pedras de uma pequena pilha. Hesito. Não quero tocar naquilo. Se houver um cadáver apodrecendo aqui, as pedras provavelmente estão cheias de doença. Relutante em seguir em frente, mexo no zíper da mochila de lona que ela decidiu que usaríamos para transportar o cadáver do animal. Balanço o peso do meu corpo para frente e para trás, alternando entre um pé e o outro, enquanto ela remove com agilidade as pedras e as descarta atrás de si. A qualquer momento o corpo aparecerá. Ele está aqui faz um tempinho, e não sei o que esperar. Por mais que já vi cadáveres na vida essa vai ser a primeira vez que vou ver de um animal.

Chaewon tinha acabado de morrer, com cortes e pele preservados pela água gélida e pela morte recente. Yuna fora cremada. E Kai também foi cremado, e meu pai mandou fazer disco de vinil com suas cinzas onde tocava suas músicas favoritas.
Eu havia implorado à minha mãe que não me obrigasse a ir ao velório, que não me fizesse olhar as cinzas de Kai, mas ela apenas se limitou a ficar parada lá, em pé, sem palavras, observando minha boca se mover. Estava sob o efeito de tantos remédios que não conseguia compreender nada do que dizia. Aquilo era demais para ela, a tia Taeyeon havia me explicado. Mas, quando fiquei lá, também parada, em pé, fitando o caixão caro e de luxo sendo cremando, achei que talvez eu entendesse um pouco o profundo desespero da minha mãe. Só que para mim não era tristeza, não havia um remédio que esvaziasse a minha mente, nem a fúria que me levava a gritar impropérios sobre advogados, ou inferno, ou vingança, como o meu pai fez por trás das portas, antes que eu ouvisse seu choro mesclado com soluços irromper pela casa, tão alto quanto sua gargalhadas. Para mim, era como pequenas pontadas, pequenos atos de impulsividade. Como simplesmente querer se auto machucar para tentar tirar aquela angústia. Secar a garrafa de bourbon especial do papai feito no Canadá. O que qualquer pessoas iria fazer em relação a isso? Meu irmão estava morto, pela minha culpa, perder sua amiga por culpa sua não é pra qualquer um, talvez se eu não tivesse nascido meu irmão e minha amiga estaria vivos nesse momento. E depois, na JYP. Trancar alguém no armário. Fazer com que a menina nova tomasse uma garrafa inteira de vodka, ou simplesmente esconder o uniforme de alguma aluna. Pular dentro do lago depois da Dança do Esqueleto. Fazer o que quer que espocasse na minha cabeça.
Só para ver o que aconteceria. Quem iria me impedir? O que alguém faria? Por quê qualquer coisa importaria?
E então o mundo começou a girar no eixo novamente. Eu, de fato, virei capitã do time de basquete. Mamãe e papai voltaram a trabalhar. Tudo se tornou real. Tudo passou a importar.
Eu não quero voltar para aquela espiral rodopiante e vazia de novo. Porque, uma vez que se esteja em tal espiral, não há onde se agarrar. É preciso que algo extraordinário, um alinhamento cósmico de proporções divinas, puxe a pessoa para fora. Conhecer alguém como a Olívia. Descobrir que tenho um lugar em um colégio como a JYP. Um lugar em que posso ter a certeza de que, sem nenhuma sombra de dúvida, o caminho à minha frente é melhor do que aquele que deixei para trás, ou não. No entanto, o equilíbrio é tão frágil....

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