Capítulo 20

54 4 0
                                    

Sentada na cama, com a bolsa de água quente sobre o ventre, o pão comido pela metade e a cartela de analgésico vazia ao lado da garrafa de água praticamente vazia, eu reflectia sobre toda a minha existência.

Quando aterrissei em Miami, ontem, Angus foi buscar-me ao aeroporto e me levou directo ao Dark Lunch, onde minha família, amigos e seus conhecidos me receberam com palmas e buquês, me felicitando pelo sucesso. Fotos minhas enquanto desfilava estavam espalhadas pelo recinto, eu estaria a amar aquilo tudo, se não estivesse tão exausta e tivesse adormecido dez minutos depois, apesar de ter passado o voo todo a dormir. Hoje percebi o porquê de tanta exaustão, ao acordar às 1h34 da madrugada com cólicas infernais e uma mancha de sangue enorme nos meus lençóis brancos.

O que a maioria das mulheres vivem em cinco, sete dias, eu vivo em um dia, mas em pior grau. Durante as primeiras doze horas, eu tenho hemorragias uterinas que me causam dores insuportáveis, fazendo com que o dr. Downer venha aplicar 2ml de morfina intravenosa para que eu consiga ao menos falar ou me sentar. A minha perna direita paralisa, meus peitos ficam extremamente sensíveis, tenho que usar absorventes pós-parto e preciso de ajuda para os trocar de duas em duas horas, o que eu não acho vergonha alguma. O lado mau? Tenho que o viver todos os meses. O lado bom? Pelo menos, é só por um dia.

Duas batidas na porta na porta me tiraram dos meus devaneios. Meu melhor amigo enfiou a cabeça na fresta da porta, arrancando de mim um sorrisinho morto, o que neste momento equivale ao maior sorriso do mundo.

-Um passarinho contou-me que a menstruação do meu pôr-do-sol decidiu dar as caras.- ele disse, ainda com o resto do corpo para fora do quarto, me fazendo dar mais um sorriso. Estava com saudades do meu Angus.- Por isso eu trouxe a loja toda de guloseimas para ela!- finalmente o homem entrou no quarto, carregando duas sacolas cheias e dançando displicentemente.

Não pude me focar em outra coisa se não em seu antebraço esquerdo enfaixado. Franzi a testa, antes de levantar o olhar para seu rosto, piscando pesadamente.

-O que aconteceu?- tentei, falhamente, perguntar. As palavras saíram pesadas e arrastadas, quase imperceptíveis.

-Não precisavas perguntar, o teu olhar já tinha feito esse trabalho por ti.- pousou as sacolas na cama e me endireitou, meu corpo estava caindo para a direita, não tenho forças para me sentar correctamente sozinha.- É escusado falares, conheço-te como a cabeça do meu pau, sei te ler. Bom dia yeti.

Beijou levemente meus lábios e depois minha testa. Antes dele começar a namorar com Deena, era assim que nós os dois nos cumprimentávamos, paramos por motivos óbvios. Já me cansei de explicar que não passa de um mero gesto afectivo entre dois irmãos, ninguém percebe.

-Bom...- começou, sentando-se na beira da cama, ao lado dos meus pés, e os puxou para seu colo, massageando-os.- Houve um campeonato de freestyle motocross em Los Angeles esta semana, e eu fui participar, óbvio. A corrida correu super bem, eu estava com os melhores pontos, até ao intervalo antes da final. Estava a beber água quando mandaram-nos voltar para a pista. Posso? Está quente aqui.- perguntou com o comando do aparelho refrigerador em mãos. Eu assenti.

Angus é fissurado por mecânica, tanto que se formou em Junho deste ano em engenharia mecânica. Tia Claire achou o Angus muito inteligente para a idade dele e o matriculou na escola ao três anos, para o primeiro ano do ensino fundamental. Muitas escolas não aceitaram a ingressão precoce do meu melhor amigo, mas a mãe dele não desistiu, até que encontrou uma, à dois quilómetros e meio de sua casa, que se admirou com a inteligência do pequeno Angus e aceitou leccioná-lo, fazendo com que ele se formasse no médio com 14 e aos 15 fosse admitido pela Miami Dade College.

- Então, eu subi na motorizada e dei arranque, mas nada da motorizada ligar.- continuou.- Pedi que esperassem um pouco e me foi respondido que deveria ter verificado no intervalo e que me seriam descontados pontos por atrasar a corrida. Mas eu verifiquei, antes de ir em busca da água, eu verifiquei todos os componentes daquela merda, desde o chassi à eletrônica, nada me escapou. Como a moto não ligava, eu abri o motor e percebi que não tinha vela de ignição, aí eu fiquei fodido pôr-do-sol. Eu mesmo tinha colocado aquela vela quando troquei o motor de 125cc para um de 250cc, como poderia não ter vela de ignição se ainda há pouco a puta da máquina estava ligada? Coloquei uma vela e, antes de voltar à pista, eu teria de descobrir quem foi que me sabotou. No fim ao cabo, descobri que foi o filho da puta que estava em segundo lugar, eu estava a vencê-lo por 75 pontos. Dei-lhe um murro na boca e me foram descontados todos os pontos. Como já não tinha nada a perder, continuei a bater-lhe até virem apartar. Acabei por ficar em terceiro lugar, saí dos 250 para os 100 pontos, mesmo tendo feito um BodyVarial 360°.- fez uma pausa, e como se lembrasse de algo, acrescentou:- O braço está enfaixado porque me queimei com o tubo de escape, nada muito grave, fica descansada.

SomedayOnde histórias criam vida. Descubra agora