Capítulo 14.2

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Boa noite leitor, fui ao mercado pela tarde (disfarçada é claro, não quero ter que dar autógrafos ou receber olhares furtivos) e comprei algumas coisas para preparar um tagine de legumes. É meu prato favorito, conhece?

Tagine é um prato marroquino, um guisado de legumes com carne. Aprendi a cozinhar com os pais da Gabriella, quando fui lá numa noite. Eu ia muitas vezes á casa da família deles quando era mais adoleceste, éramos próximos. Eu também tinha uma queda pela Gabriella, confesso. Mas isso é passado, foda-se.

É delicioso, precisa ver. Eu até mesmo trouxe uma panela adequada para cozinhar isso.

Queria que estivesse aqui, seria muito bom poder cozinhar para você… sabe, jantar com você, ao fundo uma canção suave, como Black Sabbath (recomendo que ouça Paranoid, é uma música e tanto) para ajudar a digerir, nada que possa causar azia ou indigestão.

Meu tagine estava esfriando no prato, a noite na chácara era um pouco amedrontadora, mas este pequeno medo me é mais agradável que o medo de morrer pelas mãos de meu pai.

Eu até pensei em como seria morar aqui, não nego, é tentador deixar tudo para morar no campo, mas não sei… talvez… no futuro.

Liguei o rádio, sem Spotify, sem YouTube, apenas a voz dos locutores anunciando as próximas músicas e mandando abraços para ouvintes e aniversariantes do dia.

"Um abraço para a Dona Luciana e a família Lemes, ligadinhos na maior rádio do Sul!"

Eu ficava tentando imaginar os rostos daquelas pessoas… seria a Dona Luciana loira, morena, ruiva?

Okay, mas, você consegue imaginar uma maçã roxa? Há pessoas que não conseguem visualizar imagens, apenas ideias. Eu consigo imaginá-la num tom arroxeado muito escuro, quase que preto.

Às vezes tento imaginar coisas comuns de um jeito diferente, como desfilar de cabeça para baixo, usando as mãos invés dos pés. 

Bom, não quero queimar seus neurônios te fazendo ver essas coisas estranhas que eu penso.

Acho que o tagine está pronto, é hora de jantar, então me assentei em uma das cadeiras de madeira que estavam colocadas à mesa, haviam quatro. Me pergunto, se tivesse chamado outra pessoa além de você, se ela viria, se realmente viria…

Mas é apenas um pensamento, não quero outra pessoa além de você comigo, aqui e agora, é o que torna tudo isso tão pacífico, a solidão ao seu lado.

Para alguém que vive no campo, hoje é apenas uma noite comum, como outra qualquer, com certeza há até quem ache a vida aqui maçante, pense que a vida na cidade, a badalação, seriam melhores que um noite tranquila ouvindo o grilo e o som das corujas. Mas agora não trocaria isso por nada, meus problemas estão sendo neutralizados pelo ar gelado da noite desse lugar. A badalação, as festas, as drogas, por mais que eu tente, eu sei que não me preenchem, não preenchem o vazio que há em meu peito pela falta do amor e os cuidados de um alguém. 

Sabe, quando tudo parece ser em vão? Senti isso toda a minha vida, as vezes ele volta.

Por mais que eu tentasse dar um sentido com as drogas, o sexo e as bebidas caras, isso apenas me deixava ainda mais vazia, esse vazio só pode ser preenchido com um pouquinho de amor, um sentimento bom, não há quem não queira ser amado. 

Há quem diga que o amor é superestimado, mas esse não o conhece, pode conhecer a paixão, o afeto, mas não o amor, o amor familiar, o amor romântico, careço destes, dos dois. 

Eu sinto falta disso, de uma família de verdade, com sentimento de verdade, sem teatro. Sinto inveja das pessoas simples que não precisam viver de aparências, que não passam suas vidas na frente de uma lente sorrindo todo o tempo, e quando as câmeras desligam, há um tormento sem fim.

Eu sei leitor, sei que não há família perfeita, todos têm seus problemas, são apenas problemas diferentes, mas é que eu sempre quis formar uma família, bem grande e unida, com tios, primos, avós. Eu sei que isso nunca será possível, não tenho irmãos pois minha mãe disse que não queria degradar o corpo com um feto novamente, não tenho tios, não tenho primos, não tenho nada.

Eu sempre mantive em mim o desejo de ter uma família, mas agora, quem é que compartilha do mesmo desejo que eu? Ninguém. Não casarei, não procriarei, não transmitirei a criança alguma a sujeira em meus genes, a podridão de meu DNA e a maldição de meu legado. Morrerei sozinha num quarto, meu corpo será fotografado e estampado em capas de revistas, venderão a minha morte, lucrarão com meu finamento. 

Me perdoe por toda essa melancolia, mas é inevitável pensar nessas coisas agora, são os efeitos de uma noite silenciosa. O silêncio trás a tona verdades que mantemos em nosso oculto, no mais profundo e escondido abismo de nosso ser.

Mas não era hora de lamentações, murmúrios ou angústias, o locutor se calava e dava espaço a uma bela canção dos anos 90, que ecoava entre as paredes da casa.

"Vesta a calça Saint-Tropez que deixa o umbiguinho de fora, entra na roda e rebola, rebolando sem parar…"

Terminei meu jantar e lavei a louça, estava delicioso, tinha até me esquecido como cozinhava bem, sem querer me gabar, é claro.

Agora são apenas dez horas, porém o sono vem me invadindo por conta da comida, devo ter comido demais, é a primeira vez desde os últimos meses que tenho um jantar decente, na verdade das outras vezes jantei um baseado ou algumas carreira de cocaína, é… realmente, não é uma opção muito saudável, prefiro tagine.

Devo me deitar agora e aproveitar o sono.

Boa noite, não vá dormir tarde, lhe quero descansado para amanhã. 

O Último AtoOnde histórias criam vida. Descubra agora