Karina Coast
Entramos no carro azul de Maxwell, sendo que eu sentei no banco do carona ao lado dele.
-Algum de vocês tem bala? -Maxwell perguntou ligando o carro.
-O Mochila -Cake e eu respondemos.
Ele olhou para o garoto atrás de si que estendeu dois pacotes pequenos de bala. O maior optou pela de morango.
-Desculpe perguntar, mas... "Mochila"? -O garoto disse estranhando.
Eu admito, não é comum.
-É apelido. Meu nome é Brendan -o menino respondeu com uma voz desanimada.
-Eu ainda achei o apelido da Caitlyn estranho... -ele disse.
-Para de dizer meu nome -Cake pediu fazendo bico.
Me estique para apertar as bochechas dela de tão fofa.
-Reclama com a Kara, ela que nos deu esses apelidos -Mochila disse em um tom mais audível.
-Por que isso não me surpreende? -O garoto disse dando partida no carro.
-Você mal me conhece -falei observando a paisagem urbana pela janela.
-Ninguém precisa conhecer um esquisito pra saber que é esquisito -falou rindo.
Dei uma cotovelada em seu braço.
-Maluca, quer causar um acidente? -Perguntou após esfregar o local com o outro braço.
-Não tira a mão do volante!
-Calma -ele disse rindo de mim voltando a colocar as mãos no volante.
Eu ainda vou acabar tendo um enfarte por causa desse cara.
O restante do caminho foi bem tranquilo, tirando o fato de que tive que arrastar a Cake pra fora do carro pra acordá-la.
Maxwell tocou a campainha e em poucos segundos uma das empregadas e a Senhora Jones (lê-se Mercy) apareceram para abrir.
-Maxi!
-Oi Mercy -ele a abraçou sorrindo.
-Vejo que você trouxe aquela garota bonita de novo... -ela falou como se ninguém mais estivesse escutando.
Resolvi cumprimentá-la de uma vez.
-Esses são uns amigos nossos, Mochila e Caitlyn -Maxwell apresentou os dois tímidos.
A Senhora Jones olhou para eles como se estivesse vendo um bichinho fofo num petshop.
-Podem me chamar de tia Mercy, crianças! -Ela os puxou para um abraço sufocante.
Tapei a boca para rir expressão de "socorro" de mochila e do pequeno sorriso de Cake.
-Vocês querem falar com o Willi, não é? Sobre o tal trabalho?
-Na verdade é mais sobre um... hobby que nós nos interessamos -Maxwell explicou.
A mulher colocou a mão em frente a boca que se abriu em um perfeito O.
-Meu Willi tem tantos amiguinhos! -Ela disse emocionada.
Me segurei para não rir. Vou usar isso contra o William depois.
A mulher nos levou até a sala, onde William estava escrevendo alguma coisa em um pequeno caderno.
-Willi, seus amiguinhos estão aqui! -Ela disse animada para o garoto que apenas levantou os olhos do caderno e assentiu.
-Não vou mais precisar usar seu escritório hoje -ele disse para a mãe.
-Claro! Eu vou para a universidade daqui a pouco, trate de deixar todos bem à vontade e fazer um lanchinho depois -recomendou saindo do local.
-Se for igual aos lanchinhos de ontem, tem que fazer o dobro, só a Karina tinha comido uns dez -Maxwell disse me olhando com deboche.
Lancei meu melhor olhar raivoso para ele.
Qual o problema eu comer muito se tem bastante?
Cake até tentou esconder, mas escutei a risadinha dela. Traidora mesmo.
Sentei entre Mochila e Maxwell, de frente para William e Cake que sentou ao lado dele.
Olhando esses dois lado a lado me faz ter uma sensação diferente de quando eles se viram pela primeira vez em casa. William e Cake pareciam dois opostos se considerar as aparências. Ele vestido inteiramente de preto com uma camiseta de uma banda que não conheço e seus olhos escuros gélidos marcados por olheiras profundas. Ela toda de rosa, amarelo e meias com seus olhos azuis calorosos. Ela sempre sorridente e curiosa (mesmo quando está dormindo) e todas as vezes que vejo William ele parece indiferente.
Mesmo assim eu os acho bem parecidos. Tanto William quanto Cake são extremamente crédulos quanto a tudo o que é sobrenatural, não se importam muito com o meu jeito e são bem silenciosos. Eu acho que fiquei amiga do garoto emo tão rápido porque, de alguma forma, ele me lembrou minha melhor amiga.
-Vocês dois já estão sabendo sobre ontem? -William perguntou olhando para meus dois amigos.
-A Kara nos contou -Mochila disse baixinho agarrado a sua mochila verde.
-Isso poupa bastante tempo. Eu li a parte do livro que falava sobre a lenda em questão e fiz algumas anotações sobre os fatos mais relevantes. Na verdade, não vai ser tão útil quanto eu esperava -ele disse indicando o caderno.
Engoli em seco escutando cada palavra ressoar.
-Primeiro eu gostaria de saber sobre o que, exatamente, é esse livro -Maxwell disse com curiosidade.
-É uma cópia um tanto antiga de um manuscrito de um pesquisador do século XIX, Roberto de Aurillac. Reúne lendas pagãs que surgiram na Europa durante a época da Santa Inquisição e da Peste. É uma cópia bem rara, levando em conta que a Igreja ainda tinha uma certa influência na época -ele abriu o caderno de anotações. -A maior parte do livro se trata da lenda de Delphine e os doze cavaleiros, mas também tem outras que são inúteis para nós.
"Em algumas aldeias mais afastadas dos castelos dos senhores feudais, costumavam relatar para viajantes que quando uma epidemia assola um vilarejo, os responsáveis, uma bruxa junto com doze cavaleiros apareciam para ceifar suas vidas..."
-Opa! Espera um pouco aí! -Interrompi afobada.
Não tem como isso ser verdade. Eu vi um cara morrer na visão, mas ele era mal. Delphine não pode ser uma assassina.
-O que foi doida? -Maxwell perguntou estranhando.
-Eu andei consultando umas fontes... -comecei tentando parecer racional. -Ah dane-se! Eu falei com uma fantasma que apareceu no meu banheiro e ela disse que eu não sou uma criatura das trevas que sairia matando um monte de aldeões caipiras. E vocês também tiveram a visão, não tem como...
-Ei relaxa, é um livro que reúne boatos -Maxwell colocou a mão nos meus ombros pra me acalmar.
-É verdade. É um livro do século XIX falando sobre acontecimentos entre os séculos XIV e XVI, onde o Clero é que definia a mentalidade de todos. Não tem como uma bruxa ser qualquer outra coisa além da vilã -Mochila disse olhando diretamente para mim pela primeira vez.
Ignorei totalmente o que ele disse quando vi uma mancha em seu rosto por dentro do capuz. Estiquei a mão mais rápido do que ele pode desviar. Puxei a touca dele e segurei o rosto do menino antes que ele conseguisse fugir.
Sua têmpora exibia um galo enorme e roxo. Poderia ser de uma simples queda, mas pelo jeito que ele esteve agindo hoje, sei que tem mais coisa acontecendo.
-O que aconteceu? -Perguntei olhando diretamente para os olhos acinzentados do pirralho, ignorando todos ao meu redor.
Ele olhou para baixo e disse diminuindo a o tom de voz:
-Nada demais... temos assuntos mais importantes agora.
-Pro inferno essa merda! Tira esse moletom.
Não desviei os olhos de Mochila, mas senti com uma certeza misteriosa que William e Maxwell estavam extremamente perplexos com o rosto inchado do menino. Cake estava assustada, não sei se do que eu faria ou do que aconteceu ao nosso amigo.
Eu sabia que ele estava estranho depois que voltou da escola. Ele nem se quer queria ir. Eu deveria ter prestado mais atenção e insistido que não era só pelo resfriado.
O menino não moveu um músculo.
-Tira esse moletom agora, ou eu te levo para falar com seu padrasto -falei com meu tom mais sério, para ele perceber que não estou brincando.
-Faz o que ela diz, por favor... -a voz miúda de Cake soou assustada, despertando o garoto.
Ele tirou o moletom exibindo bastante pele ralada nos braços finos e hematomas nos ombros.
-Quem fez isso com você?
O puxei para ficar em pé de frente para mim.
-Vou pegar curativos -William se levantou e bateu nos ombros de Maxwell para ele lhe acompanhar.
Depois que eles saíram da sala eu perguntei sentindo cada um dos meus ossos arder em fúria.
-Quem foi? -Perguntei me esforçando para não gritar.
Eu só queria encontrar os responsáveis por isso e fazê-los ficar pior. Fazer o mundo pagar.
-Uns garotos... da escola... -ele disse engolindo em seco.
-Quero nomes.
-Kara, não. Suas ameaças não vão adiantar com aqueles delinquentes! -Ele falou condescendente.
-Eu não vou ameaçar ninguém, vou dar um jeito neles -falei apertando os punhos sentindo os nós dos dedos doloridos.
Ele arregalou os olhos e negou com a cabeça em desespero. Provavelmente viu pelos meus olhos, que não estava me importando se eram crianças.
-Não! Você não pode fazer isso!
-Posso e vou! -Falei bem na hora que William e Maxwell apareceram na sala.
Senti a sala toda aquecer junto com meus ossos.
-O que está fazendo? -William perguntou incomodado.
Eu não sabia. Eu só queria achar quem fez mal ao Mochila e queimar. Queimar até virar pó.
Ouvi chamarem meu nome, mas não me importei. Estava cega de ódio e medo.
Àquela voz distante e sofrida soou na minha mente. Não posso permitir que sofra outra vez.
Eu achei que fosse explodir de vez comigo e com tudo ao meu redor. Achei que fosse me perder.
-Kara... -a voz doce e serena de Cake me invadiu, tocou na minha alma e acabou com a ardência em meus ossos.
Foi instantâneo. A ira dentro de mim sumiu.
Quando eu voltei a enxergar a realidade, Cake estava esticada pra manter os braços envoltos em mim e Mochila. Nós três parecíamos com àquelas crianças felizes que se encontraram por acaso há seis anos perto da casa da minha avó. Felizes e sem preocupações.
Me vi extremamente eufórica com a aura que saia dela. Era totalmente diferente de quando acontecia comigo e isso me fez ter certeza de que a magia era real. Porque naquele instante, minha melhor amiga parecia tudo, menos um ser humano comum.
-Você também... -William disse do outro canto.
Eu tive mais certeza do que minha amiga fazia quando a sensação, a mesma de ontem a noite, a sincronia, a conexão entre todos nós se concretizou com a visão afastando nossos sentidos da realidade.
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Cartas aos Mortos (Delphine E Os Doze Cavaleiros - Livro 1)
FantasyKarina Coast é uma adolescente imatura e comilona que vem tentando agir como um fantasma, igual aos que ela vê e tenta ignorar a vida toda, até que um conselho de uma troca de cartas com sua falecida avó faz com que descubra que seus dons vão muito...