dois.

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Minha mãe me questionou quando cheguei em casa.

Perguntou onde eu estava, com quem estava, e o que estava fazendo. Disse que eu estava pálida como se eu tivesse visto um fantasma — o que eu realmente tinha — e que eu deveria ter um bom motivo pelo qual minha bermuda nova tinha rasgado.

Não sei porquê, mas eu menti. Disse que tinha tido que pular uma cerca de arame farpado para pegar a bola de futebol que caíra dentro da casa de alguém, e que minha roupa tinha ficado presa quando estava saindo. Não falei sobre a aparição. Mesmo sendo boa-mortense, ela não acreditaria em mim, e mesmo que acreditasse, iria me proibir de sair de casa pra sempre. Então, depois disso, ela só me deu um sermão, sobre como o dinheiro pra comprar minhas roupas não caem do céu e coisas do tipo, e me mandou ir ajudar minha irmã na cozinha. Eu só aceitei quieta, porque não era como se eu fosse discutir com ela ou algo do tipo.

Meu único conforto é que eu sei que pelo menos a Vovó acreditaria em mim se eu a contasse. Ela provavelmente surtaria, mas acreditaria em mim. Uma pena que eu não podia ir na casa dela agora só pra contar isso.


Quando eu chego na cozinha, Maria Rita me lança um olhar torto, como se soubesse exatamente onde eu estava e o que eu estava fazendo, e eu tento sorrir, fingindo normalidade.

Mesmo que nós duas nos parecemos muito, Ritinha é mais velha que eu quatro anos e tem o cabelo comprido. Ela saiu da escola ano passado, e mesmo assim ela continua sendo a aluna favorita de todos os professores do Colégio Eduardo Flores, e é algo com que eu tenho que lidar sempre que minhas notas vermelhas saem ou eu levo algum esporro por fazer gracinha na aula. Maria Rita é perfeita. Ela é a filha perfeita, a aluna perfeita, e como Vovó sempre diz, ela também seria a namorada perfeita, já que todos os rapazes da cidade querem namorar ela.

Nenhum rapaz quer me namorar, isso é fato. Vovó também diz isso toda hora. "Com esse jeito de moleque e esse cabelo curto, ninguém vai querer você, Maria Madalena!", e eu aceitei. Não é como se eu quisesse casar e ter quinze filhos igual todas as outras meninas de Boa-Morte parecem querer. Mas Maria Rita, embora seja o que todo mundo ache, parece também não querer muito isso. Ela diz que quer estudar e ir pra Capital, pra ser pediatra ou coisa do tipo.

E eu acho que ela tá certa em querer isso. Ninguém consegue ter um futuro muito brilhante aqui nesse fim de mundo. E ela é inteligente o suficiente pra se livrar de Boa-Morte e estudar e ficar rica na capital. É uma das centenas de qualidades de Maria Rita. Como eu disse, ela é perfeita.

Lavei a mão na pia e me aproximei da mesa da cozinha, vendo todos os grãos de feijão espalhados separados em seções.

— Quais você já catou? — perguntei, e Ritinha apontou os que estavam do seu lado esquerdo, então me aproximei dos que estavam no canto direito da mesa, e comecei a separar os grãos das sujeirinhas.

Eu e ela ficamos em silêncio por alguns segundos, até que eu pigarreei, a fazendo olhar pra mim.

— Você ouviu o que eu tinha contado pra Mamãe mais cedo? — ela negou. Bom. — Eu... acho que eu vi um fantasma hoje.

— Fantasma de quem? — Ritinha perguntou, voltando a olhar pro feijão.

— Da menina Anunciação que morreu no casarão. — separei uma pedrinha e joguei ela na pequena pilha no meio da mesa.

— E onde que você tava que você viu ela?

— No casarão. — respondi, e ela fez uma careta. — Eu tinha perdido uma aposta e me mandaram entrar lá pra pagar a prenda, entende? E aí ela tava lá, debaixo da árvore, toda de branco igual assombração mesmo.

— Você sabia que isso é invasão de propriedade? — Ritinha respondeu, me lançando um olhar rapidamente.

— Mas ninguém mora no casarão há anos!

Os Fantasmas de Boa-Morte ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora