Rita me acorda no outro dia batendo na minha porta como se uma bomba estivesse prestes a cair em cima da nossa casa.
— O que foi? — perguntei com um grito, os olhos ainda fechados, sem forças pra levantar da casa. Do outro lado da porta trancada, ela exclamou de volta, o tom meio irritado:
— Levanta logo, preguiçosa. Papai vai chegar antes do almoço e mamãe tá te chamando pra ajudar no almoço.
Bocejei, e escutei ela se afastar, provavelmente indo pro próprio quarto. Estava morrendo de sono, mas consegui me arrastar para fora da cama. Ontem eu mal tinha conseguido dormir a noite inteira; toda hora eu me lembrava do beijo e eu sentia meu corpo inteiro formigar só com a visão sendo projetada na minha mente.
Novamente, isso aconteceu, mas eu fui até o banheiro e joguei um tanto de água gelada no rosto. Acorda, Mari. Nada de sonhar acordada.
Mamãe estava na cozinha, preparando alguma coisa em cima da pia. Cida estava na mesa, cortando verduras pra salada. Enquanto eu era a escolha mais apropriada em ajudar mamãe durante o almoço, ela era a melhor em cortar a salada em pedaços pequenininhos, mesmo sendo a mais nova, que não deveria ter acesso a facas. Na minha cabeça fazia sentido que ela tivesse sido um assassino em série ou um atirador de facas de circo ou um chef profissional na vida passada. Combinava até que demais com a personalidade dela a habilidade de fatiar as coisas.
— Bom dia — falei, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Acordou tarde, hein, madame? — Mamãe me olhou por cima do ombro. — Lava essas vasilhas pra mim?
Assenti, e andei até o seu lado.
— Que horas meu pai chega? — perguntei, colocando sabão na bucha.
— Ele já tinha saído de lá da última vez que me ligou. E isso era oito e meia, — Mamãe respondeu, procurando pelo relógio da sala com o pescoço.
— Olha lá quantas horas são, Cida — Pedi, e a menina apenas me lançou um olhar mortal, ainda com a faca na mão, indo olhar o relógio.
— Onze e dezessete, eu acho. — ela espiou o relógio, e voltou andando para perto. A menor então foi até a mesa e voltou a picotar o tomate.
— Já deve estar chegando, então — resolvi.
Mamãe balançou a cabeça, misturando alguma coisa com uma colher de pau. Ela me olhou novamente, provavelmente procurando algo que estava dentro da pia, mas então disse:
— Você precisa cortar o cabelo.
Concordei. Era verdade. Ele já estava quase o dobro do tamanho que deveria estar, desde que cortei ele ano passado, entrando no meu olho de forma com que eu sempre tinha que o colocar atrás da orelha.
Mesmo mamãe tendo sido completamente contra a ideia de eu cortar o cabelo antes, ela sempre era a primeira a apontar que ele já estava grande demais, e que era hora de pegarmos a tesoura novamente. E isso era bom, em partes.
Apesar de ser extremamente brava, aquela era, de certa forma, uma das formas que ela secretamente me dava liberdade. E não só a mim, mas eu acho que eu era a única que percebia aquilo.
Um exemplo era Rita e o creme de camomila que ela sempre passava no cabelo para deixá-lo mais claro. Não dava pra ver nada quando eu tinha a ajudado a passar ele um tempo atrás, mas agora, era realmente fácil de notar a diferença. E eu tinha absoluta certeza que mamãe tinha percebido, mas fingia que não.
Com Cida era um pouco diferente, mas ela era criança, e a mais nova também, então nem sempre as mesmas coisas se aplicavam a ela. Entre nós três, ela era com certeza a mais certa de si, mas eu não sabia se ela continuaria assim por tanto tempo. Rita também costumava ser assim.
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Os Fantasmas de Boa-Morte ⚢
Romance[HIATO] A pequena cidade de Boa-Morte sempre foi muito crédula em todos os sentidos: em Deus, em santos, em fantasmas, aparições, mal olhados e todo o resto. Todos os seus habitantes eram extremamente supersticiosos, e Maria Madalena e sua família n...