um.

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Eu não sei onde está escrito mas sei que é uma regra: não entre em casas mal-assombradas.

Se isso não era uma regra antes, então eu acabei de decidir que é, porque, eu juro por Deus, desejei muito que fosse uma no momento que encarei a porteira de madeira que dá no caminho para o casarão assombrado. Eu sei que eu não deveria estar aqui. Mas aposta é aposta, e se você perde uma, você é obrigado a cumprir a prenda que vem com essa derrota. Essa é uma regra que poderia não ser uma regra. Quem sequer inventou isso?

Pra piorar, não é como se Mateus e Beatriz fossem me deixar amarelar agora. "Você já tá aqui, Maria, deixe de ser arregona!". Eles estão no final da rua nesse momento, me vigiando, impedindo que eu escape. Não dá pra fugir. Eu tenho que entrar.

Queria nunca ter feito essa aposta em primeiro lugar. Quem sou eu para achar que eu ganharia de qualquer um deles naquele videogame idiota? Eu nunca nem tinha encostado num controle daqueles na vida, não tinha como derrotar os maiores experts de Boa-Morte.

Mais uma vez lancei um olhar sobre o ombro, para os dois bobões no final da rua, escondidos atrás de uma arvorezinha fina como se ela adiantasse de alguma proteção contra os fantasmas. Fiz o sinal da cruz e beijei o crucifixo no meu pescoço.

Por favor, Deus, não me abandona agora. E de olhos fechados, pulei a porteira.

Não sei o que eu imaginei que aconteceria quando eu pisasse de verdade no terreno do casarão assombrado. Talvez que um demônio entrasse no meu corpo ou que um raio me atingisse de repente, e me transformasse em pó, mas não. Eu só senti... nada. Tinha achado que eu fosse pelo menos ter um mal-estar súbito, mas não aconteceu nada. Absolutamente nada.

De qualquer jeito, eu estava tremendo. Será que eu devia rezar o Pai Nosso?

A estradinha de terra que levava para a casa era bem cuidada — o que eu também não esperava, afinal, aquilo era um casarão mal assombrado. Não deviam ter pedras bonitinhas enfeitando cada lado da estrada e sim, sei lá, ossadas humanas e essas coisas do tipo.

Se eu morresse ali, eu provavelmente me tornaria uma dessas ossadas que eu esperava encontrar, já que Bia e Mateus não entrariam ali nem se alguém os desse um milhão de reais. Pra ser honesta, nenhum Boa-Mortense em sã-consciência entraria nesse lugar depois da morte de outra pessoa. A não ser a minha mãe, para me ressuscitar e depois me matar de novo por ter tido aquela ideia estúpida. Só esse pensamento me deu arrepios. Fantasmas podiam me assustar, mas minha mãe brava me aterrorizava.

As palmas da minha mão estavam todas suadas quando eu finalmente andei todo o caminho até conseguir ver o casarão. E era realmente como eu imaginava que seria. As paredes de tinta descascando, vigas de madeira ligeiramente inclinadas e meio podres, trepadeiras e erva daninha crescendo por todos os lados. Todas as janelas dos dois andares estavam fechadas com tábuas de madeira em cima, e cacos de vidro recheavam o chão perto das janelas que não tinham proteção, provavelmente vítimas de galhos das árvores e talvez de algum vândalo maluco dessa cidade. Será que eu me encaixava nessa categoria agora? Eu estava invadindo a casa de alguém. E com certeza era maluca por invadir uma casa assombrada.

Contudo, ao invés de me deixar assustada, aquele lugar me deixava triste. Os raios do sol se pondo atravessando os balaústres quase caindo, as plantas crescendo nas rachaduras das paredes... Aquele lugar um dia fora lindo, mas hoje, estava completamente abandonado.

O que era até meio confuso, considerando o caminho bem cuidado lá atrás.

Talvez eu devesse me gabar disso na volta. "Não foi assustador. Foi só triste". Isso se eu voltar.

Credo, Maria, vira essa boca pra lá.

Eu não sei se eu deveria entrar na casa. Não estava no combinado da aposta. Era só ir no terreno, certo? Além do mais, o teto poderia cair na minha cabeça a qualquer momento. Ou pior, o fantasma da menina morta poderia finalmente decidir que queria me matar. Choraminguei. Eu nem devia estar aqui! Todo mundo sabe que o casarão dos Anunciação é assombrado. Todo mundo já ouviu a história. Se não fosse por aquela maldita aposta...

Dei a volta pela lateral da casa, tomando cuidado para não fazer nada que pudesse irritar a fantasma, tipo quebrar uma janela ou pisar numa flor.

Ouvi dizer há muito tempo atrás que havia uma árvore no meio do jardim na frente da casa. Um ipê rosa, enorme, que florescia várias vezes ao ano. Ipês eram uma das minhas árvores favoritas, e eu queria confirmar que o boato era verdade, mesmo que esse ipê em específico estivesse em terreno assombrado, e rumores dissessem que a menina da lenda fora enterrada logo debaixo dele.

Uma vez, minha avó contou que plantou uma árvore dessas, quando ela era pequena, lá na fazenda do meu tio-avô. Ela dissera que a árvore cresceu linda por anos, mas caiu depois que um raio a atingiu numa tempestade, quase em cima da casa deles. Minha bisa tomou aquilo como mau presságio, e eles cortaram o que sobrou dela pela raiz. Não sei se era verdade, mas acho que muitas pessoas por aqui não gostam de ipês rosas por causa dessa história.

E bem, não vou mentir, o ipê realmente existia. E era enorme, como falavam. Não estava com flores, mas pequenos pontinhos brancos surgiam nos galhos. Contudo, saber se a árvore estava florescendo ou não não era minha maior preocupação naquele momento. Minha maior preocupação era, na verdade, a garota de vestido branco parada debaixo dela, imóvel.

Meu estômago deu várias cambalhotas em menos de um segundo. Instintivamente parei e dei um passo para trás, pronta para ir embora, mas meus olhos não deixaram a fantasma. Eu tinha medo de que se eu tirasse os olhos dela ela iria aparecer de repente na minha frente e me matar. Isso foi meu maior erro, porque por isso, eu pisei num galho seco de uma árvore, e ele estalou debaixo do meu pé.

A fantasma então olhou para mim.

Merda. Era sempre assim nos filmes. Sempre um barulho entregava a pessoa e ela morria.

Eu não fiquei para descobrir o resto da história. Me virei e corri.

— FANTASMA! — foi o que gritei, sem nem me preocupar em olhar duas vezes pra assombração debaixo da árvore. — FANTASMA FANTASMA FANTASMA...

Tropecei dezenas de vezes antes de chegar no portão e pular por cima dele. Minha bermuda se prendeu em algum prego escondido na madeira, mas eu ignorei e corri até onde meus amigos estavam, os olhos arregalados e o coração batendo como um tambor.

— FANTASMA! — gritei de novo.

Eles nem me questionaram. Saíram correndo junto comigo, os olhos igualmente arregalados.

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