— Você quer pipoca? — Maria Rita pergunta, enfiando somente a cabeça através da porta da sala.
Levanto os olhos do aparelho de DVD e faço um joinha. O Senhor dos Anéis é ejetado logo em seguida, e eu me viro, tomando todo o cuidado pra guardar ele na caixinha em segurança. Depois daquele susto, eu não tomaria nenhum risco com qualquer filme da locadora. Puxo então o Moulin Rouge, e o coloco no aparelho. O menu de seleção aparece, e eu dou início, mas pauso logo em seguida.
Papai e eu vimos o primeiro dos filmes mais cedo, e mamãe de vez em quando aparecia pra dizer que não estava entendendo nada, mesmo não tendo ficado mais de cinco minutos corridos no mesmo cômodo que a gente. O filme era bom, meio comprido demais, mas eu tinha gostado. Mateus já tinha me falado dele antes, então realmente era um que estava na minha lista.
Tinha gostado de Arwen e Frodo — nem sei porque, na verdade. Papai tinha gostado de Aragon, e mencionado como era era um personagem interessante pelo menos umas cinco vezes.
Escutei os estouros da pipoca na cozinha, e algum tempo depois, Ritinha apareceu com duas vasilhas cheias de pipoca.
— Fiz sem sal, se quiser colocar cai lá e pega o saleiro. — e ela se sentou no sofá.
Suspirei, e fiz o que ela falou, e trouxe dois copos de suco também. Entreguei um deles pra ela, e já aproveitei pra soltar o play do filme enquanto me sentava.
Aquele saleiro de vaquinha provavelmente me odiava, pois não bastava quando eu balançasse ele, nada de sal saia. Logo desisti, e foquei na introdução do filme.
Como eu tinha falado com Raquel, entre nós duas, minha irmã era definitivamente obcecada com musicais. Então enquanto eu ria da atuação esquisita do mocinho e das músicas que do nada mudavam completamente de rumo, Ritinha parecia adorar cada segundo. Ela era esquisita desse jeito mesmo. Adorava tudo que era meio diferente (como a ex-amiga dela também). A única diferença era que Ritinha era bem mais discreta com as coisas que ela gostava.
Ninguém nunca sabia o que ela realmente pensava das coisas. Ela sempre tinha sido boa em esconder as emoções — e por isso tudo aquilo que tinha acontecido tinha me chocado tanto. Ritinha não costumava mostrar que se importava com o que as pessoas pensavam, mas todo mundo sempre falava sobre ela mesmo assim. Ela era perfeita, era impossível não comentar. Todo mundo queria que as filhas fossem como ela. Bonita, aluna exemplar, simpática... Eles só não sabiam que ela roubava todos os doces de chocolate branco da caixa sem deixar pra ninguém.
— Não tô entendendo nada. — murmurei, quando, de repente, outro número musical irrompeu da tela, e enchi a mão de pipoca.
— Eles confundiram o Duque com o outro moço, e ele foi no encontro com a Satine mas ela não sabe que é a pessoa errada, e tá achando que ele quer outras coisas com ela quando na verdade ele só quer ler poesia pra ela.
— Ah. — agora fazia mais sentido. — Esse cara é meio doido.
— E essa Satine é tão linda. — minha irmã disse baixinho, como se nem tivesse percebido que tinha dito isso.
Concordei. Ela era, realmente, muito bonita. As roupas combinavam com o cabelo vermelho dela.
Eu gostava de como tudo era bem excêntrico, desde os vestidos espalhafatosos até as maquiagens até a atuação. Era cômico o suficiente pra ser interessante até pra mim, e eu tinha que dar esse crédito aos produtores do filme. Eu não costumava ficar interessada nesse tipo de filme — romances — mas até que estava gostando bastante desse.
Quando o filme finalmente acabou, Ritinha parecia em choque. Não sei o que ela esperava do final, quando o Christian literalmente disse que isso acontecia logo nos primeiros cinco minutos do filme. Mas tudo bem, Maria Rita era horrível em prever finais de filmes.
— Aonde você achou esse filme? — ela questionou, mais indignada com a história do que realmente querendo saber a resposta.
— Raquel recomendou. — falei, pegando uma pitada de sal do fundo do pote. Só então percebi o que tinha dito, e vi minha irmã tensa, do outro lado do sofá. Suspirei. — Por que vocês brigaram?
— Você não sabe? — Ritinha arqueou as sobrancelhas, como se esperasse que Raquel tivesse me contado de tudo.
Balancei a cabeça.
— Ela meio que... beijou o menino que eu gostava. — ela deu uma pausa longa, e meu queixo caiu. — E ela sabia que eu gostava dele, mas mesmo assim beijou ele. E depois se fez de sonsa quando perguntei.
Eu não sabia nem o que dizer. Se aquilo era verdade mesmo, eu não sei nem como olharia na cara de Raquel quando fosse devolver os filmes. Teria que fingir não estar brava, ou então nem iria lá de qualquer jeito. Mas... eu conhecia Raquel, e não achava que ela faria isso nunca na vida, mas também conhecia Maria Rita, e ela não mentiria sobre isso também.
— E aí? — perguntei, a incentivando a falar mais.
Rita brincava com uma linha solta na costura do sofá, e não me olhou quando perguntei isso.
— A gente brigou. Ela tinha começado a andar com umas pessoas que eu não gostava e começado a agir de um jeito esquisito, então aquilo foi o estopim. A gente não se falou mais depois disso.
Assenti, encarando o vazio. Fazia bastante sentido. Pra uma amizade de anos acabar do jeito que tinha, só podia ser algo do tipo que tinha acontecido. Mas de quem Ritinha gostava? Ela nunca tinha me contado que estava gostando de um garoto. Mas pensando bem, na época que isso tinha acontecido eu provavelmente teria feito uma expressão de ânsia de vômito pra ela; então eu também não contaria pra mim se fosse ela.
Ritinha então se levantou, pegou as vasilhas vazias e os copos e sumiu na cozinha. E eu fiquei pra desligar o filme, minha cabeça cheia de pensamentos sobre o que tinha ouvido.
Ainda não conseguia acreditar que Raquel tinha sido tão mal caráter assim. Se dependesse de mim, eu já teria feito um barraco por causa disso. Respirei fundo, e apertei o botão de ejetar do aparelho. Tinha que me segurar, ou acabaria indo lá na locadora Caixão agora mesmo jogar um Moulin Rouge na cabeça da garota.
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Os Fantasmas de Boa-Morte ⚢
Romance[HIATO] A pequena cidade de Boa-Morte sempre foi muito crédula em todos os sentidos: em Deus, em santos, em fantasmas, aparições, mal olhados e todo o resto. Todos os seus habitantes eram extremamente supersticiosos, e Maria Madalena e sua família n...