vinte e três.

869 150 68
                                    

Safira não fala comigo antes da aula na segunda-feira.

Não que ela fosse obrigada a falar comigo ou coisa do tipo, mas eu esperava pelo menos um "bom-dia" ou um "oi, Mari" quando ela chegou na sala e se sentou perto de mim e dos nossos amigos. No entanto, ela não disse nada, e eu não quis ser a que faria isso.

Mateus, no entanto, me olhou no segundo que ela entrou na sala com um sorrisinho, e eu quis esgana-lo enquanto escondia meu rosto com a mão. Eu nunca seria capaz de me livrar dele depois das coisas que eu tinha revelado semana passada, no entanto ele também tinha me dito coisas, e eu só estava esperando a hora certa para encher o saco dele também.

Bia não percebeu nada disso, eu acho, apesar de ser a maior fofoqueira de Boa-Morte toda, que percebia todos os mínimos detalhes nas outras pessoas. Ela estava mais focada contando e reclamando de todos os terrores de visitar a tia no feriado ao invés de pular Carnaval com a gente.

Na aula de história a professora relembra as datas de entrega do trabalho que se aproximam, e eu olho de relance para Safira, que encara o quadro sem nem piscar. Ela é minha dupla, no fim das contas, mas depois da vez que nos encontramos na biblioteca, nunca mais nem tocamos no assunto desse trabalho.

Para me lembrar de falar sobre isso com ela mais tarde, anoto a data de entrega nas costas da mão com letras garrafais. Espero mesmo que ela tenha pensado mais sobre o tema que decidimos; eu nem saberia por onde começar a pesquisar sobre. E foi ela que deu a ideia, de qualquer jeito.

No intervalo, Safira não me olha diretamente nos olhos. Ela conversa comigo e ri das minhas piadas, mas em momento algum ela realmente me olha de verdade, e eu sei que tem algo de estranho. Quero conversar com ela sobre o beijo, mas ao mesmo tempo não quero, porque é estranho, se você parar pra pensar. Eu não acho que quando as pessoas ficam numa festa elas conversam sobre isso depois. É algo banal, pelo que eu sei, e nunca é realmente sério — a não ser que eles se gostem, e esse não é o nosso caso, eu acho.

Talvez seja por isso. Ela não me olha porque não quer conversar sobre, porque não foi nada demais. Pelo jeito que ela está, é realmente como se ela quisesse fingir que nada tinha acontecido. Por isso, tento me convencer de que realmente não foi nada demais. Foram só beijos, e amigos ficam às vezes, se a relação é próxima assim.

É normal. Amigos se beijam, e não é porque eles se gostam.

Eu acho.


No fim da aula, Safira finalmente se aproxima e me olha no rosto, apesar de acabar desviando o olhar sempre.

— O que você vai fazer hoje? — ela pergunta, as mãos no bolso da calça do uniforme.

— Nada. — Coloco a mochila sobre os ombros.

— A gente precisa terminar a primeira parte do trabalho — Safira lembra, e eu concordo. — Posso ir na sua casa hoje?

A ideia me dá arrepios. Depois do jantar com o namorado de Rita alguns dias atrás, a ideia de levar alguém que meus pais não conhecem lá em casa me parece assustadora. Em partes porque já falei mal de Safira para Rita depois daquela vez na padaria, e em partes — em grandes partes — porque cheguei na semana passada com marcas de batom no rosto, e Safira está usando o mesmo exato tom nesse momento.

— Na minha não dá. Não pode ser na sua? — A sugestão parece incomodar ela. Sei que ela mora com a tia e que ela é meio chata, mas imagino que não possa ser tão ruim assim a ponto de eu não poder ir lá pra fazer o trabalho.

— Tenho que conferir se minha tia vai estar lá ou não. — Ela parece relutante em aceitar, mas balança a cabeça após alguns segundos pensativa. — Eu te ligo pra confirmar. As três horas. Você sabe onde é.

Os Fantasmas de Boa-Morte ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora