A campainha tocou no finalzinho da tarde de sexta-feira.
Era meu pai, com as sacolas de compra da papelaria e uma mala cheia de roupas pra lavar, sorrindo.
Trouxe tudo que nós havíamos pedido (meus cadernos novos, duas canetas bic pretas, duas azuis, três lápis pretos e borracha, uma agenda para Ritinha, e uma caixa de lápis de cor para Cida), e trouxe também uma caixa de bombom amarela, que colocou na mesa da TV da sala.
Maria Rita imediatamente roubou todos os de chocolate branco que tinham na caixa, e depois de agradecer papai pela agenda com um beijo na bochecha, fugiu pro quarto dela, trancando a porta. Cida fez um bico de choro, mas aceitou um dos bombons tradicionais de amendoim e logo se distraiu com os lápis de colorir. E enquanto eu reclamava da atitude de Rita, mamãe somente riu, tirando um bombom de coco da embalagem. Essa era a parte ruim de compartilhar os mesmos gostos com a sua família quase inteira.
Papai então segurou meus ombros e me puxou pra cozinha, e sem que mamãe ou Cida vissem, ele tirou do bolso um dos bombons de chocolate branco e também um doce recheado que não vinha na caixa. Acho que meus olhos até brilharam nessa hora.
— É segredo, beleza? — ele sussurrou pra mim.
— Obrigada. — sussurrei de volta, o abraçando, e ele sorriu. Do nada, a expressão dele mudou, e ele franziu o cenho.
— Bateria de novo? — disse, e eu também franzi o cenho.
Papai então, com os olhos semicerrados, puxou o aparelho auditivo da orelha, observando pra ver se havia algo de errado com o aparelho.
Sinalizei "O que foi?".
— Eu acabei de trocar a bateria, mas ele já apitou falando que tá baixa de novo. — ele pressionou uma aberturinha, e colocou o aparelho de novo na orelha. — Tomara que não esteja estragando.
Assenti. Papai era totalmente surdo em um dos ouvidos, e parcialmente no outro, por causa de um acidente quando ele era novo. Se o aparelho estivesse estragado, sua vida ficaria um bocado mais complicada. Mesmo tendo vivido grande parte da vida sem ele, um aparelho desses era caro, e no seu trabalho (e em quase todos os outros ambientes) ninguém sabia LIBRAS. Pelo menos, ele havia ensinado todas nós aqui de casa a falar assim que nós desenvolvemos coordenação motora o suficiente pra isso.
E sem querer me gabar, eu sou a melhor de todas nós aqui em casa. Até de Ritinha. Pra falar a verdade, acho que LIBRAS era a única coisa na qual eu era melhor do que ela. Não sei se era exatamente por causa disso, mas entre minhas irmãs, eu era a que era mais próxima do meu pai. Nós sempre fomos muito juntos, e eu puxei um pouco da rebeldia dele. Éramos sempre nós dois contra a braveza da mamãe. Bem, pelo menos quando ele estava na cidade.
Ele então se levantou, depositou um beijo no topo da minha cabeça, e foi até onde a esposa estava. Talvez pra falar do aparelho, não sei.
Silenciosamente desembrulhei o bombom de chocolate branco, e escondi o outro doce no bolso da bermuda. Joguei o papel fora, e disfarçando a boca cheia, fui pro meu quarto, ansiosa pra já comer o outro também.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Os Fantasmas de Boa-Morte ⚢
Romance[HIATO] A pequena cidade de Boa-Morte sempre foi muito crédula em todos os sentidos: em Deus, em santos, em fantasmas, aparições, mal olhados e todo o resto. Todos os seus habitantes eram extremamente supersticiosos, e Maria Madalena e sua família n...