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Não devia bancar a tola, isso ela sabia, acordou mais cedo do que o de costume, não conseguia dormir, sentia-se sufocada durante o sono, paralisada em sua cama, não dormia, mas também não se mexia, era como estar em transe, como se algo lhe pedisse para ficar na cama mesmo com todas as circunstancias, ela não ficou, calçou os tênis puídos que usava desde sempre, já havia os ganhado em condições ruins, já estava gasto e ela tomou muito cuidado para que durasse por mais tempo, já estava no seu terceiro ano, o que lhe dizia que em breve teria que correr atrás de doações, ela caminhou ate a janela do quarto, a lua cheia pairava acima do mirante, e as montanhas na costa da cidade, brincavam as estrelas que aos olhos pareciam baixas demais, como se tivessem ali parar ouvir um segredo o qual a montanha revelará, ate mesmo as brisa estava fresca, sem odor de peixe, era uma noite excepcional para dormir pensou ela, então pulou a janela, os quartos ficavam no primeiro andar, o que era bom já que as escadas estavam apodrecidas demais para que tivessem acesso com segurança ao segundo andar, por isso ninguém ia ate lá já havia um tempo, a cidade era pacata demais, as pessoas podiam dormir de porta aberta, mas ela sempre trancava a sua, não que a casa em ruinas tivesse alguma segurança, seguiu rua acima, disse a si mesma que caminharia ate a praia e esperaria o amanhecer, pelo menos isso ela admirava, santa Edwiges tinha o nascer do sol mais bonito do mundo, não que ela já tivesse visto muitos outros, mas aquele era lindo para não ser valorizado, da sua casa ate a praia, eram apenas 10 minutos, algumas pessoas andavam pela cidade, provavelmente bêbados voltando para casa, já passava das 3 da manha, pensou em como havia ido parar ali, tinha 11 anos, o pai expulsou a mãe de casa, e elas foram junto, ele perguntou a ela se gostaria de ficar e morar com ele e a nova esposa, ela cuspiu em seu rosto com todo o ódio que conseguia ter naquela idade, a irmã não passava de um bebe, as vezes se perguntava sobre o amor, se ele realmente existia, ao ver o vídeo de casamento dos pais ela achava que não, que devia ser tudo mentira e enganação, pessoas eram atraídas por beleza, por um corpo, atração física e tolerância, prazer, mas amor, parecia uma ficção dos livros da biblioteca, chutou uma pedra que saiu quicando pela ladeira em todos os paralelepípedos, e então chutou outra porem essa não foi tão longe, já conseguia avistar a praia, e sentir o cheiro peculiar que vinha dela, pelo menos não era de peixe e sim de sal, maresia, o vento frio fazia com que seus cabelos voassem pelo rosto, ela tentou os conter mas não sabia onde estava o elástico, e foi assim, apenas a alguns quilômetros da praia, onde era seu destino ao sair de casa, ela sentiu de novo, o cheiro extravagante e amadeirado, que ainda assim a lembrava uma floresta cheia de gotas de orvalho, mas esse não era o cheiro das montanhas da redondeza e ela sabia disso, era de algum lugar distante, como se dois mundos com cheiros diferentes convergissem ali, ela procurou de onde vinha, seguiu a brisa que batia contra seu rosto, ali de onde estava o mirante parecia vivo, e a lua parecia lhe contar um segredo, as estrelas brilhavam tanto que iluminava o céu da madrugada, pensou e pesquisou em sua mente se já havia presenciado uma noite assim antes, a resposta foi não, ela tentou prosseguir, tentou dar mais um passo em direção a praia, não conseguiu, precisar ir ate lá, precisar seguir aquele cheiro. O mirante, tal mirante que antes nunca havia passado de uma torre de pedras com escadaria interminável, parecia gritar para que ela o subisse, para que ela visse o que tinha lá em cima, então ela o fez, devia ter aprendido algo em seus 20 anos de vida, devia saber que não podia andar sozinha de madrugada nem mesmo em uma cidade pacata, devia saber que na escuridão o perigo habitava, mas naquela noite, ela ignorou.

Ele tentou ir embora, chegou ate a cruzar a fronteira do pais, determinado demais, rápido demais, mas não conseguiu, talvez fosse o amuleto, pensou ele, o amuleto queria a chave, pertencia a ela, foi um susto, ele admitia que depois de tantos anos ainda podia se ver surpreso, procurava uma chave, não uma humana, procurava paz, e quando olhou nos olhos dela apenas via o caos, o ódio que pairava sobre o mar azul que eram seus olhos, talvez fosse aquilo sobre ela, aquele peso esmagador, mas ainda assim era eletrizante, ele sorriu para o horizonte, o céu tranquilo e a brisa que o obedecia, a cidade era úmida demais, uma brisa faria bem aquelas pessoas, a lua descia para se curvar, assim como as estrelas e a montanha, ele se curvou de volta, os Deuses sempre estavam dispostos a rir, ele lembrou, não sabia o porque havia voltado, ate olhar para baixo, ate sentir aquela presença, aqueles olhos sobre si, ele negou novamente, ela não podia o ver, mas os olhos azuis, olhos famintos, pareciam o devorar, se respirasse teria perdido o ar, se tivesse um coração, esse bateria como um louco contra costela, se pudesse sentir emoções, diria que estava nervoso, que surpreso, e ansioso para o que o futuro o infligia, faziam séculos que não podia se animar, séculos que se recusava a provar da mente de outra pessoa, a se permitir sentir o que os outros sentiam, algo nele se animou, não tinha coração mas a chama da eternidade vivia entediada dentro de si, e quando ela deu o primeiro passo na escada, ela acordou, ele pode sentir, o fogo consumidor que se ascendia pelo corpo, cambaleou para tras, era como se bebesse do próprio poder, como se tudo que fosse, estivesse se aprimorando, bem ali naquele segundo, ele segurou com força contra a mureta que o impedia de sofrer uma queda terrível, se perguntou o que ela queria subindo um mirante tao alto com o tornozelo naquele estado, podia ouvir a respiração, o coração, os músculos em movimento, o cabelo ao voar com o vento, e ate o farfalhar das roupas, os ruídos do tênis sobre as pedras da escadaria, ela podia ouvir o quanto ela se aproximava, subiu no muro ficando de pé, olhou para lua com raiva, imaginou o quanto ela ria a suas custas, era uma maldição, cada segundo da existecia, uma maldição, ela podia ver o sorriso estampado ao redor, a natureza o debochava, o amaldiçoava mais a cada dia por ser contra tudo que deveria ser natural no mundo, era uma besta sem lugar algum, e a maldição de ambos era depender um do outro, ele podia fazer chover, para que ela fosse embora, não queria enfrentar aquilo, não depois de tanto tempo, a bruxa dissera a ele "ache a chave que guarda a essência da tua alma a muito perdida, e a maldição se quebrará" ele ainda podia sentir a dor, mesmo com tantos anos, podia sentir a dor de ter a alma arrancada em meio aquele campo de batalha, quando ela saiu de sua pele, e apenas o oco restou, procurava pela alma esse tempo todo, a chave que guardava a sua liberdade para se livrar da maldição, seu maior castigo por ter sido quem era, por ter feito o que fez, chuva, seria uma tempestade ele disse a si mesmo erguendo a mão para o céu. Então aquela voz grave e firma, antiga demais para seu corpo soou.

"Eu não sei o que esta passando senhor, mas pular não é a única solução"

Ele olhou para trás lentamente, espantado com a voz e a garota a poucos centímetros de onde ele estava em pé no muro, seus olhos encontraram os dela, e por um segundo teve certeza que a garota não respirou, ela olhava fixamente para ele, mas não demonstrava emoção alguma fora o pânico de presenciar um possível suicídio, ela podia o ver, ela estava realmente o vendo.

"não tenho a intenção de pular" ele respondeu sem se mover, ainda olhava para ela com o canto dos olhos a brisa soprava em seus cabelos, era ele o cheiro, ele era copo a natureza viva, o cheiro de todos os mares, e todas as florestas, de toda a vida, e aquela sombra nos olhos verdes, o cheiro da morte. "apenas acho a vista mais bonita de onde estou" ela respondeu sem interesse algum, medo algum na fala, a mureta de pedra era grossa e estável, devia ter uns 50 centímetros de espessura, mas era altura o perigo, um vento poderia o derrubar, não havia proteção fora o muro no qual ele estava em cima, a lua brilhava em seu rosto e o vento brincava com o cabelo, o sobretudo negro como a noite voava como uma capa, estava totalmente vestido de preto, os braços abertos para sentir a noite, ela se aproximou e olhou para vista da cidade, a escuridão fora o luar, as poucas iluminações publicas, as poucas luzes, as montanhas, era por ele então, que tudo estava tão bonito, que a lua estava tão próxima, todos queriam o ver, como se estivesse sendo puxada, por uma onda de insanidade, subiu na mureta, sentiu o vento forte contra si, o calafrio nas pernas, o tornozelo latejando pela escadaria que subira, ela abriu os braços, e o vento não parecia a empurrar mas a estabilizar, como se lhe desse segurança, a vista era linda, mas talvez fosse a adrenalina, tudo parecia mais vivo, ela ousou virar o rosto para o lado e encarou os olhos verdes incandescentes, a expressão felina e mortal, estava olhando para a escuridão, seus lábios estão vermelhos que pareciam beijados por sangue, ele sorriu, revelando os dentes mais brancos que ela já vira, um olhar assassino apareceu em seu rosto e a brisa pareceu mudar, com agilidade ele se virou completamente e deu passos ate ela, não tinha medo algum de altura, parecia não ter medo de nada, os cabelos cor de ônix eram espessos e ondulados, ela temeu cair com a proximidade dele, mas não desceu de onde estava, pensou que deveria ter mais medo dele do que de cair, mas tinha um detalhe sobre ela, que a fazia diferente da maioria das pessoas,  nunca teve medo de escuro, então virou o rosto e sorriu de volta, e pode jurar que o homem, ou a coisa, como ela achou que deveria o chamar, pois nunca um homem poderia ser daquele jeito, pode jurar que algo nos olhos da coisa, queimou.

Chama-me do que QuiserOnde histórias criam vida. Descubra agora