Capítulo 1

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Dias atuais:

Uma imensidão de luzes coloridas entra pela janela do meu quarto todas as noites e só acaba quando o amanhecer se apresenta. Todas as vezes que eu não consigo dormir, eu continuo deitado de lado observando a minha janela e o parque de diversões que há do outro lado da rua. Nunca pensei em fechar cortina para interromper a entrada de toda essa luz, pois querendo ou não, essas são as únicas luzes que iluminam o meu quarto durante a noite e também a minha vida.

Desde que eu abandonei a minha cidade natal – sem mais nem menos – eu tenho vivido a maior mentira de todas. Vivo fingindo que está tudo bem e é nítido que não está. Eu já era uma farsa antes; mas agora venho passado dos limites. E mesmo sabendo disso, continuo seguindo o fluxo.

Já faz dois anos que eu saí de casa e vim me esconder em Curitiba. E quando eu digo "me esconder" é realmente isso que eu estou dizendo. Desativei todas as minhas redes sociais, troquei de chip e ao chegar aqui mandei mensagem para uma única pessoa – a que eu mais confio – porém, não trocamos muita ideia. Pois eu vivo ignorando-a, já que ela faz parte do meu passado do qual eu quero tanto fugir. Em pensar que eu... deixa pra lá.

A minha ideia inicial era me mudar para o exterior e viver a minha tão sonhada vida em São Francisco. Porém, eu não aguentei nem um ano lá. Todos os meus planos de vida foram alterados por causa da minha tristeza, solidão e também depressão.
OK! Eu não posso culpar ninguém em relação a isso, só a mim mesmo. O inocente; inútil; iludido; bobo... Nunca me faltam adjetivos para falar mal de mim mesmo.

O meu despertador toca e eu ainda estou acordado. As luzes haviam sido desligadas e o sol já refletia sobre o parque a minha frente. Toda sua vida foi embora e não sobrou nada além de brinquedos enferrujados, sujeira e um vazio. Virei–me de barriga para cima, respirei fundo e expirei pela boca. Quem diria que eu chegaria aqui?

Levanto para fazer todas as minhas necessidades de manhã. Ao terminar, vou à cozinha e encho uma taça de vinho. E em pensar que eu odiava todo e qualquer tipo de álcool por causa do meu pai e todo o mal que ele e o álcool juntos trouxeram para a nossa família. Agora, o filho segue o caminho do pai.

Preparo um prato com tipos variados de queijos picados em quadrados nada perfeitos, alguns biscoitinhos e vou me sentar na sala, em frente à televisão. Coloco alguma série que eu ainda não tenha assistido e começo a acompanha-la.

Horas mais tarde percebo que terei que fazer compras. Esse é um dos únicos momentos em que eu saio de casa ou abro a porta de entrada do meu apartamento. No começo eu fazia as compras do mercado pelo aplicativo, dai o entregador era uma das únicas pessoas que eu via, por mês. Só que chegou um momento em que eu percebi que teria que sair desse apartamento para fazer algo, caso contrário iria enlouquecer, mais. E foi assim que o vizinho começou a puxar assunto comigo.

– Oi! – ele diz assim que eu fechei a minha porta – Saindo para fazer compras? – mesmo sabendo, ele sempre pergunta.
– Sim! – assenti com a cabeça e virei–me, em direção ao elevador.
– Posso ir com você? – congelei – Eu estou indo ao mercado também. Nós podemos fazer companhia um para o outro.
– Você que sabe! – digo apertando o botão do elevador que logo chega. Entramos e ficamos em silêncio.

Heitor. Ele é o vizinho que mora no apartamento de frente ao meu e foi a primeira pessoa que me viu e perguntou se eu estava bem. A resposta obviamente foi "Sim!", porém, ele não é bobo. Eu não estava nada bem. Não me comunicava com ninguém já fazia alguns meses; não conseguia dormir direito; não comia nada e o pouco que comia jogava para fora minutos depois. Sem contar que meus olhos estavam completamente brancos. Desde então ele passou a fazer almoço e janta e me entregar pela porta. Eu fazia um esforço para comer, mas não dava certo. Fora isso, nós nunca trocamos diálogos elaborados ou viramos colegas nem nada. Ele não se intrometia na minha vida e nem eu na dele.

Chegamos ao mercado e cada um pegou um carrinho. Caminhamos por caminhos similares e pegamos mantimentos diferentes. Enquanto eu buscava coisas mais saudáveis e leves, Heitor pegava coisas gordurosas e pesadas.

– A minha vida está uma loucura! – diz enquanto guia o seu carrinho – Eu não tenho tanto tempo assim para cozinhar, por isso que só te entrego comida às vezes – me encarou – você já está se alimentando bem e direito? – assenti.

Será que podemos manter uma conversa onde ele faz as perguntas e eu apenas assinto com a cabeça?

– Que bom! – sorriu de lado.

Já estou quase terminando as minhas compras; só me resta pegar alguns legumes e frutas. Heitor me seguiu e começou a fazer o mesmo.

– Então, eu estava pensando... – respirei fundo. Lá vem! – Eu vou receber alguns amigos lá no meu apê hoje. – ele diz sem sotaque nenhum, pois também não é daqui – Você podia aparecer.
– Não acho que seja uma boa ideia! – digo seco.
– Vai fazer bem pra você, por...
– Quem é você para saber o que vai fazer bem para mim? – pergunto rápido e nos encaramos – Desculpa! – abaixo meu tom de voz – Terei que recusar. Muito obrigado!
– Se resolver aparecer, começa às 8h!

Eu não digo mais nada e nem ele insiste.
Comecei a me sentir mal pelo modo em que eu o tratei e não podia fazer mais nada em relação a isso, pois já pedi desculpas.

A nossa volta para casa foi como a ida, um completo silêncio. Assim que chegamos as nossas portas, Heitor se despede de mim e eu aceno com a cabeça. Guardo as coisas de geladeira para não estragar e o resto fica na sacola em cima da mesa. Sento no sofá e fique imóvel enquanto olho para o teto. Será que eu devo ir? Eu mereço uma segunda chance? Não. Esqueça e nem pense nisso.

São 19h57min e eu estou parado em frente a minha porta. Devo tocar na maçaneta ou apenas voltar para o sofá e viver esse ciclo para sempre?

Seu sol é em touro; ascendente em escorpião e lua em áries, reaja, Pietro! Toco na maçaneta e passo pela porta, trancando-a logo assim que passo.

Respiro fundo e conto até dez. Estico meu braço para tocar a campainha do Heitor e o celular que está no meu bolso começa a tocar. Pode ser a operadora; alguém me cobrando ou a única pessoa que tem o meu número e eu deixei bem claro que ela só podia me ligar em caso de emergência.

Pego o celular de meu bolso, Thayla. A única que tem o meu número. Anos atrás meu coração começaria a acelerar de curiosidade, mas agora, eu só quero desligar. Porém, essa é a primeira vez em que ela me liga em dois anos. Então, atendo.

– Alô!
– Oi, bebê! Como é bom ouvir sua voz novamente! – a sua está meio fraca.
– O mesmo! – digo sem nenhuma empolgação na voz – O que você quer?
– Não há melhor maneira de dizer isso. Então, lá vai... O seu pai, ele morreu.
– Ah...

Soltei esse "Ah!" por conta da surpresa. Eu deveria chorar por alguém que me odiou? Alguém que disse que eu não era mais seu filho? Por um machista, homofóbico e alcoólatra? Por que se a resposta for "Sim!", eu sinto muito em decepcioná-los.

– Oi! Você ainda está ai?
– Sim! Desculpa.
– Eu sei que é muito para assimilar e que você deve estar chocado em relação a isso e...
– Nem um pouco. Você me ligou só para isso?
– Sim!
– Então, grato! Vou desligar.
– Tá bom. Beijos!

Desliguei.
Fico encarando a porta do Heitor e o número 39.
Não sinto nenhuma pena por aquele que um dia eu chamei de pai. Porém, algo mudou. Eu não posso simplesmente tocar a campainha, tentar ter uma conversa com o Heitor e seus amigos e ser tudo uma farsa. Não posso fingir que nada aconteceu.
Abro novamente a porta do meu apartamento. A festa acabou para mim.

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