Capítulo bônus

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Dias atuais:

Por muitos anos eu tentei definir quem são os vilões e os mocinhos da minha história. E acontece que eles não existem, existe apenas um vilão, eu. Ninguém retardou a minha trajetória. Eu fugi dos meus problemas, eu me escondi deles e no final encarei quase todos, bravamente ou não. O que importa, é que agora eu me sinto muito mais leve do que anos atrás. As minhas lembranças estão lentamente virando pó e logo não farão mais sentido.

Após anos preso dentro de mim mesmo, eu posso finalmente dizer que eu encontrei o meu lar. E com toda a vergonha do mundo, eu assumo que meu lar não é o meu apartamento e sim uma pessoa; Heitor.

Durante anos eu ficava dizendo a mim mesmo e para outras pessoas que eu não me renderia a ninguém. Que ninguém seria capaz de derreter o coração congelado que eu tenho e tudo mais, porém, isso foi antes de eu conhecê-lo. Para ser sincero, eu nunca soube em que momento da minha vida eu fiquei tão frio e, respectivamente, comecei a me perder no meio disso. Mas isso não importa agora, pois eu e Heitor conseguimos restaurar uma boa parte do que eu era. Não posso dizer que eu sou um santo agora, mas eu posso dizer que eu cansei de lutar. Do que adianta estar mal humorado o tempo todo? Por que eu quero brigar com todo mundo por coisas bobas? Para que guardar o rancor de algo que aconteceu anos atrás? Não posso negar que ainda estou trabalhando nesse negócio de "rancor". Todavia, estou muito mais leve.

Estou tão leve que estou disposto a passar a virada do ano em Búzios com os meus primos. Já faz quase um ano desde a minha viagem para o Rio de Janeiro e desde então eu não voltei. Nós continuamos nos comunicando por mensagens e às vezes videochamada, o que é bem raro, pois eu demoro a responder ou não estou com vontade.

Estou sentado na poltrona do avião ao lado da janela e o Heitor está ao meu lado assistindo "Juventude Transviada". Enquanto isso, meu coração começa a acelerar por lembrar que terei que apresentar o Heitor para os meus familiares, que não serão muitos, mas mesmo assim no meio desses "poucos" estão aqueles que vivem na idade da pedra, assim como o meu pai viveu durante toda a sua vida... mas enfim, não vamos voltar nesse assunto.

O avião pousa, nós pegamos as nossas malas, alugamos um carro e seguimos em direção a Búzios. Heitor conecta o bluetooth no aparelho do carro e começa a tocar as músicas da playlist que ele mais gosta. Logo ele observa a paisagem enquanto eu dirijo.
É tão diferente estar aqui de novo, é como se o ar estivesse mais limpo e eu finalmente consigo respirar.

– Você estava escrevendo no avião, não estava? – Heitor pergunta sorrindo e possivelmente ansioso.
– Estava! – assenti.
– Posso ler? – silêncio.
– Você sabe que...
– Você não gosta que leiam suas coisas quando você está por perto. – assenti – Eu juro que não falarei nada. Vai ser como se eu estivesse mexendo em qualquer coisa no celular.
– Obrigado por chamar a minha história de "qualquer coisa".
– Não foi...
– Eu estou apenas brincando com você! – ri de lado – Pode ler.

Ele pega meu celular e começa a procurar o que eu havia escrito hoje.
Comecei a escrever histórias quando criança. Nunca foi algo pensado em ganhar dinheiro ou popularidade postando em aplicativos, mas sim algo para ser meu. Com o passar do tempo eu descobri que escrever era e continua sendo a minha terapia. Criar uma história do nada, pensar nos personagens e suas características, desabafar... Não tem nada melhor do que você poder falar "Eu escrevi um livro", pois você acabou de criar um universo com os seus pequenos detalhes, com suas próprias ideias, vulnerabilidades, seus aprendizados...

Desde que eu conheci o Henry, eu não consegui escrever um parágrafo sequer. Depois de tudo o que aconteceu então... Eu fiquei muito tempo parado e enferrujado, admito. E do nada, há alguns meses atrás eu resolvi tirar todas as minhas histórias do porão e agora estou escrevendo mais rápido que nunca. Heitor descobriu sobre isso e não pode me ver escrevendo nada que já quer ler, o que é bom. Porém, quando eu estou por perto me sinto mega desconfortável.

Respiro fundo.
Ele não vai ser cruel comigo, vai?

Heitor continua lendo os três novos capítulos que eu escrevi, enquanto eu dirijo nervoso e ansioso. Parece que eu estou prestes a transpirar mesmo o ar condicionado estando mega gelado.

– Quando esses dois vão perceber que estão apaixonados? – larga o celular e me encara.
– Eles não vão.
– O quê? – alterou seu tom de voz que saiu um pouco falho – Eu senti uma química entre eles nos dois primeiros capítulos e com o passar do tempo só vai aumentando. Como eles não vão terminar juntos?
– Nem sempre você termina com o amor da sua vida – solto e logo me arrependo.
– Senti um pouco de experiência na sua fala. – silêncio – E eu só vou deixar passar se você me der um spoiler.
– Justo! – o encarei por alguns segundos e ele sorriu como quem ganhou essa – Eu não escrevi pensando neles dois ficarem juntos, foi por acaso e nem foi eu que reparei isso. Mas enfim, o mais bonzinho da história vai passar por muitas coisas e vai acabar se apaixonando por alguém que não apareceu ainda. – ele semicerrou os olhos – Mas como eu deixei meio aberto, nem sempre o amor da sua vida e o amor para a sua vida. – tento ao máximo olhar em seus olhos enquanto estou dirigindo – Mas quem é o amor da vida dele e quem é o amor pra vida? Eu não sei, você não sabe e só ele pode me dizer.
– Ótimo! – gritou – Agora eu estou mais curioso. – negou com a cabeça e virou para frente – Mas como você não sabe? Você é o escritor. – ele ri.
– Quando eu começo a escrever, eu que mando nos personagens. Mas quando eu começo a dar personalidade para eles, eles que mandam em si mesmos – sua feição parece estar mais confusa do que antes – Eu quero que ele faça uma coisa, mas não bate com a personalidade dele, então ele vai fazer outra coisa totalmente oposta. A partir desse ponto, eu não mando mais neles, eles que mandam em mim. – paramos no sinal e consigo encará-lo sem desviar o olhar.
– Interessante! – balança a cabeça – Ansioso para o que está por vir. – sorriu.

Paro o carro em frente a um portão de garagem e puxo o freio de mão. Tiro o cinto de segurança e encaro o Heitor. O olho esquerdo dele começa a dar tique – é o que acontece sempre que ele fica nervoso – solto um leve sorriso de lado. Parece que foi ontem que eu senti o nervosismo de reencontrar com a minha família e agora eu vejo isso nele, o medo do desconhecido. Não posso negar que estou um pouco nervoso também, pois não contei dele para ninguém. Nenhum familiar meu sabe que eu estou namorando – acho que eles não estão esperando por isso, por eu ter superado tão "rápido".

Nós descemos do carro, nos aproximamos da porta e eu toco a campainha. A música está um pouco alta, mas eu tenho a sensação de que alguém está chegando para abrir a porta em 3,2,1...

– Eae, cara! – ele me encara surpreso e eu o encaro mais surpreso ainda.
Cauê?!
– Como é que você tá? – sua surpresa rapidamente se torna em animação, é como se nada tivesse acontecido no passado. Eu continuo em silêncio. Heitor me encara à espera de alguma reação minha – É bom te ver! – levanta o braço para eu apertar sua mão.
– Prazer, meu nome é Heitor! – ele aperta a mão do Cauê para não deixá-lo no vácuo, pois sabia que eu não faria isso.
– Prazer! – responde um pouco sem graça – Vocês vão entrar ou...
Se eu pudesse, eu iria embora agora. Porém, Clarisse aparece atrás dele, colocando a mão em seu ombro e eu já consegui entender tudo. Clarisse, sua filha da puta!

Continua em: "O Problema dos Heeris" 

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