Eu acordei perplexo olhando pro teto tentando me lembrar a onde eu fui com o carro ontem a noite. Por que diabos eu não me lembro? Revirei todas as minhas memórias na tentativa de achar uma única recordação mas nada veio.
Minha memória estava piorando cada vez mais, eu sabia que era algo recorrente e que poderia desencadear em algo grave, mas eu sempre me recusei em acreditar que alguém com vinte e um anos como eu sofreria de algo parecido com Alzheimer.
Mesmo já sabendo da resposta de minha mãe, eu fui até a cozinha perguntar ela sobre ontem pra ver se ela sabia de algo do meu paradeiro. Eu saí do meu quarto usando minha blusa preta de manga longa, calça folgada verde-escura e um par de chinelos velhos que eu usava dentro de casa. Fui até a cozinha enquanto minha mãe fazia o café de costas pra mim e perguntei:
- Mãe - Ela notou minha presença e mesmo assim não se virou na minha direção.
- Oi filho, bom dia - Ela tirava a panela com o café pronto do fogão e levava-a na direção do coador sobre a garrafa de café na intenção de coá-lo - Acordou cedo por algum motivo específico?
- Acho que fiquei meio encucado com uma coisa - Ela coava o café mexendo o coador em círculos de leve como sempre fazia - Eu disse à senhora onde eu ia ontem a noite?
- Heitor, Heitor - Ela terminou de coar o café e fechava a garrafa com a tampa giratória - Eu já disse pra você ir ao médico por causa dessa sua memória.
- Eu vou mãe - Me aproximo da cadeira, puxo-a e sento-me - Mas é algo muito estranho, é a primeira vez que me esqueço de algo tão repentinamente.
- Você disse que ia comprar bebida com o Carlos pra festa de hoje - Ela se aproximou com a garrafa de café e a pôs em cima da mesa - Já cansei de pedir pra você marcar um neurologista por causa dessa sua falta de memória - Ela voltou para o balcão e pegou uma sacola com vários pães, uma sacola menor com pães de queijo e passou na geladeira ao lado pegando um recipiente com manteiga - Vou aproveitar que você tem um plano de saúde bom do seu emprego e marcar uma consulta com um médico na segunda!
- Eu mesmo marco mãe, não precisa...
- Você vai me enrolar, eu te conheço desde que você nasceu.
Eu assenti com a cabeça e dei um riso discreto dizendo:
- Tudo bem dona Talia - Ela bufou de leve - A senhora quem manda!
- Ainda bem que você sabe garoto.
Eu dou mais um sorriso, dessa vez menos discreto, noto que ela percebe e sorri de volta. É por esses momentos que passo com minha mãe que sinto que vale a pena viver, converso mais com ela sobre o trabalho dela no cartório, ela me conta umas fofocas, fala mal de algumas pessoas insuportáveis e aquele sentimento de gostar de estar vivo me preenche ainda mais. Eu me sinto genuinamente feliz quando estou passando um tempo com ela, é semelhante a quando estou com Carlos e Luana.
Droga, não importa onde eu esteja os pensamentos sobre ela vem de qualquer jeito. Isso de certa forma é ruim pois eu não quero ficar pensando nela o tempo todo, mas por outro lado é bom pois me encoraja cada vez mais a me abrir com ela sobre meus sentimentos.
Após eu e mãe comermos eu voltei pro meu quarto e a dona Talia disse que ia organizar a cozinha para fazer o almoço. Os pensamentos sobre Luana não me abandonaram nem por um instante sequer, eu fiquei intrigado e curioso ao mesmo sobre o que ela ia me falar e apreensivo sobre o que eu ia falar pra ela, então resolvi fazer a mesma coisa que ela fez, instigar. Peguei meu celular e mandei a seguinte mensagem pra ela:
Posso te perguntar uma coisa séria?
Algum tempo se passou e eu pude jurar que minhas mãos começaram a suar, ela logo respondeu:
Claro
Eu esperei alguns segundos pra não ficar tão na cara que eu estava fazendo o mesmo joguinho dela e logo enviei:
Mudei de ideia, acho que vou falar só pessoalmente :D
Eu não podia ver isso, mas pelo que conheço dela posso jurar que ela se contorceu de raiva neste momento, ela logo me respondeu:
ARROMBADO!
Eu ri baixinho, como se por um instante eu fosse a pessoa mais feliz do mundo e logo larguei o celular ao lado da cama onde eu estava deitado. Coloquei o braço em cima dos olhos com um grande sorriso no rosto, e com esse timing perfeito minha mãe abriu a porta do quarto dizendo:
- Devo marcar um psiquiatra pra você também? - Ela trazia um sorriso no rosto - Por que está rindo desse jeito filho?
- Nada mãe - Desfiz o riso de maneira artificial - Vi um vídeo engraçado aqui agora.
- Aham sei - Ela desfez o sorriso e fez uma cara de desconfiada - Eu conheço esse tipo de sorriso.
- Conhece nada, eu apenas ri de um meme.
- Tá bom Heitor Viana dos Santos - Ela fechou ainda mais o semblante de desconfiada - Vou fingir que acredito em você - Eu faço um gesto de deixa pra lá com a mão e ela coloca as mãos na cintura, logo ela desfaz a pose - Vim te falar duas coisas.
- Sou todo ouvidos dona Talia.
- Primeiro: Você não deve mais sair sem alguém de confiança por perto, nem dirigir - Eu me sentei na cama e a encarei com uma cara de dúvida, ela pareceu entender o que eu estava sentindo - Com esse problema de memória você pode acabar se machucando.
- Mas mãe, é só uma vez ou outra...
- Sem discussão rapaz - Ela fechou a cara me tratando como um moleque que eu realmente era por ainda morar com ela - Segundo: Essa festa de sábado à noite que vai rolar hoje na fazenda que você me falou, você não vai dirigindo e deve avisar pro Carlos ficar de olho em você.
- Mãe eu não sou mais criança - Ela fez um gesto de shiu com o dedo na frente da boca.
- Você sabe que comigo não tem discussão, ou é isso ou eu te impeço de ir - Eu compreendia a preocupação dela, mas eu não queria incomodar Carlos com isso - Iai, estamos conversados?
- Tudo bem mãe.
- Promete?
Aí ela tocou numa ferida, essa palavra, prometo, ela sabia que eu não quebrava promessas. Eu fiquei pressionado a aceitar.
- Prometo dona Talia.
- Ok então, era só isso.
Ela ia fechando a porta, e eu disse rapidamente:
- Mãe, espera - Ela parou no mesmo instante - Te amo.
Ela sorriu, o sorriso mais lindo que eu podia ver neste momento e respondeu:
- Eu te amo filho - E fechou a porta cantarolando como sempre fazia.
Eu não era muito de me abrir, ou de falar te amo pra alguém, mas depois que minha mãe descobriu que tinha câncer no ano passado eu sinto medo de perdê-la a cada segundo que se passa, então eu nunca sei quando vou dizer um último te amo.
Eu peguei meu celular e mandei mensagem para Carlos dizendo que ele iria nos levar dirigindo o carro da minha mãe, não falei sobre ele precisar ficar de olho em mim, ia contar isso depois.
Um questionamento pairou minha mente neste instante: Por que eu estava tão determinado em falar com Luana sobre meus sentimentos? Era como se eu tivesse jurado a mim mesmo que eu faria isso. Eu sacudi a cabeça numa tentativa de afastar esses pensamentos e comecei a passar um tempo em redes sociais, não demorou muito até eu chegar numa notícia:
Os evoluídos estão mesmo entre nós?
De novo esse papo de Evoluídos, quem diabos escolheu esse nome ruim? Eu tentei me afastar dessa notícia rodando o feed mas pelo visto algo queria que eu soubesse que os Evoluídos realmente existiam, mas eu afastei tudo que falava sobre isso, me dava arrepios, ainda mais quando envolviam aquele assassino do ano passado, o Seis.
Espero que tudo isso não passe de uma besteira, penso comigo mesmo.
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Troco
Mystery / ThrillerTroco é uma antiga lenda que circula pelo Brasil e assombra milhares de crianças antes de porem suas cabeças nos travesseiros. Por algum motivo isso está conectado a uma festa que Heitor vai dar com seus nove antigos colegas do ensino médio numa faz...