5 de Março de 2022 - 22:15
Eu tinha um dom que se tornou uma maldição. Não sei se havia nascido com isso ou adquiri com o tempo, mas descobri quando era criança que ao tocar com a mão esquerda na cabeça de alguém com uma memória em mente eu apagava isso da mente da pessoa, caso eu não pensasse em nenhuma memória algo aleatório era apagado da mente da pessoa.
Eu nunca usei muito esse dom, sentia-me agraciado com ele e usava-o poucas vezes. Descobri também que se eu apagasse uma grande quantidade de memórias eu me esgotava, sentia uma enorme dor de cabeça, meu nariz sangrava e eu podia até desmaiar.
Era uma graça ter isso, fazer o serviço de apagar um trauma da cabeça de alguém, ou desfazer uma merda feita por mim apagando a memória de alguém, tudo envolvendo esse dom era uma graça. Até o dia que minha memória começou a se apagar, numa espécie de Alzheimer. Nessa mesma época eu comprei um caderno de couro onde anotava as coisas que eu não podia esquecer de jeito nenhum. Quanto mais o tempo passava, mais coisas eu escrevia nele, a ponto dele ficar cheio de anotações aleatórias e coisas que eu precisava me lembrar.
Nunca contei isso pra ninguém, nem pros meus melhores amigos, nem pra minha mãe, eu hesitei em contar todas as vezes pois poderia trazer risco a eles saberem disso e tudo que eu queria era deixá-los longe de perigo. Foi aí que minha mãe descobriu o câncer e tudo começou a piorar muito. Eu não tinha nenhuma esperança de futuro, se minha mente começasse a me deixar na mão mais vezes eu me tornaria um caquético em alguns poucos meses.
Na mesma época as notícias sobre Evoluídos começaram a se espalhar e eu com certeza me encaixava como um, mas como ninguém sabia eu estava plenamente seguro, mesmo que com uma mãe com câncer e com uma perda de memória desgraçada.
Num dia qualquer eu saí sozinho para um bar no centro de Aurora e fui confrontado por um homem, um homem que parecia saber muito, parecia saber coisas sobre mim que nem eu mesmo sabia, seu nome era Luciano Fernandes, ou como ele se intitulava, o diabo.
Sim eu conversei com o diabo, na realidade ele próprio veio atrás de mim, parecia saber da minha dor, parecia saber do meu problema. Ele disse que podia retirar a habilidade de mim, fazendo com que minha memória voltasse ao normal e que poderia curar o câncer da minha mãe.
Eu recebia essas informações ajoelhado encarando minhas mãos enquanto a casa ardia em chamas ao meu lado, logo após notar isso eu escutei ao meu lado:
- Mas você precisava me dar algo em troca - Disse Luciano como se tivesse saído diretamente do inferno - E você se dispôs a me dar o que eu queria, Heitor.
Eu olhei para o lado com metade da cara queimada e notava o rosto cínico do próprio diabo.
- Você, você... - Eu disse gaguejando.
- Eu, não - Ele sorriu olhando para o corpo de Carlos caído mais a frente no pasto - Você não conseguiu impedir que seus melhores amigos viessem e pagou com a vida deles.
Ele estava certo.
- Mas por que, por que ele fez isso?... - Eu questionei olhando minhas mãos.
- Porque você fez o pacto Heitor - Ele andou na direção oposta ao pasto, indo em direção a área da piscina - Você se lembra de tudo agora, por que está me perguntando? Você fez o maldito pacto, queimou aquele seu caderninho de lembranças no quintal da sua casa e logo após apagar o fogo apagou sua própria memória sobre tudo isso pois não conseguiu arcar com os próprios atos.
Ele estava certo novamente, eu fiz o pacto, lembro de ter vindo até esta fazenda antes com o próprio diabo e ter feito os símbolos no porão, ter assinado a carta com minhas iniciais, tudo para que meu sofrimento acabasse.
- Você se lembra de tudo agora Heitor, não vai mais perder a memória - Disse Luciano virando a direita - E sua mãe não tem mais câncer, foi um bom negócio - Ele fez uma pausa eu o olhei virando com o pescoço de lado - Adeus.
- Espera - Eu perguntei sem olhar pra ele - Seis pessoas, isto está ligado àquele assassino em Aurora?
Ele riu, quase gargalhou e então respondeu:
- Sim e não - Ele voltou a caminhar - Tudo está conectado a algo muito maior, você não entenderia.
Ele então se virou e andou desaparecendo como sempre fez.
Luana tendo a cabeça esmagada contra a árvore, Daiane sendo pega pela parte de trás da cabeça e jogada no chão, logo após Arthur sendo morto, Gabriel tendo a cabeça esmagada na minha frente contra o vidro do carro, Leo sendo esmagado pelos pés descalços de Troco e Carlos tendo o pescoço esmagado pelo mesmo. Seis vidas, minha culpa.
Lágrimas começaram a cair dos meus olhos, eu tirei o catarro do nariz com o braço que não estava queimado, agora eu estava sofrendo, meu coração estava em pedaços e eu me lembrava de tudo.
Memórias são apagadas, sentimentos não, pensei comigo mesmo, era por isso que eu estava chorando ontem...
Eu vi as três meninas virem correndo do carro, pareciam ter visto que Troco desapareceu. Vi Martha com lágrimas nos olhos, Olívia ao lado dela e Rob veio em minha direção enquanto eu chorava agora, calado e ajoelhado naquela garagem enquanto a casa pegava fogo.
- Ele desapareceu Heitor - Rob se aproximou de mim devagar enquanto falava - Acabou...
Ela me encarou assustada, com razão, nesse exato momento eu lembrei das falas de Luciano:
Você se lembra de tudo agora Heitor, não vai mais perder a memória.
E sua mãe não tem mais câncer.
E inconscientemente enquanto lágrimas caiam de meus olhos um sorriso largo se abriu em meu rosto.
- Heitor... - Rob questionou ainda assustada - Por que você está sorrindo?
Eu fechei o sorriso na hora, olhei pra ela pleno, ela pareceu se assustar com minha cara queimada neste momento, após isso eu respondi:
- Porque o pacto que foi feito se encerrou - Involuntariamente uma gargalhada me veio e eu comecei a gargalhar alto, nisso até Olívia e Martha me olhavam de longe.
Rob se afastou devagar enquanto minha gargalhada sórdida ecoava por toda aquela fazenda maldita.

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Troco
Детектив / ТриллерTroco é uma antiga lenda que circula pelo Brasil e assombra milhares de crianças antes de porem suas cabeças nos travesseiros. Por algum motivo isso está conectado a uma festa que Heitor vai dar com seus nove antigos colegas do ensino médio numa faz...