9 de Janeiro de 1947, Sermon West
Naquele inverno, a floresta era preenchida com um manto níveo e o gelo serpenteava por entre as árvores em forma de brisa e flocos. Até ao momento, era o segundo ano mais frio que Don tinha sentido em todos os seus quarenta e quatro anos de vida. Porém, sentia que a sua resistência ao frio estava melhor que antes. O ano mais frio que ele teve a infelicidade de estar vivo para o presenciar, foi na Varsóvia, na Polônia, no ano de 1945.
Todos os anos que passou a lutar na guerra tinham-lhe sido como uma lição de verdadeira resistência de, sinceramente, qualquer coisa.
Ele passou fome, frio, teve a perna gravemente ferida numa explosão que o deixou também temporariamente surdo e viu os seus amigos e superiores deitados sobre a neve, que terminava de os cobrir e secar a carne dos seus cadáveres.
O cenário que, como uma maldição, vivia até ao presente na mente do Don. O céu estava negro, resultado dos incêndios, e haviam gritos, de uma lingua que ele desconhecia na altura, de pessoas a pedir ajuda, perdidas a meio dos escombros e sangue espalhados por toda a extensão da rua Zielonka. A cada passo, tornava-se cada vez mais angustiante desviar o olhar dos restos humanos espalhados pelos escombros dos edifícios arruinados pelas explosões.
Como se todos esses tormentos não bastassem para conduzir alguém à beira da insanidade, foi algo ainda mais devastador que assolou Don completamente. Três anos depois, quando a Alemanha lançou um ataque maciço contra a sua terra natal, ele e a sua família decidiram fugir. Consciente de que abriria mão dos seus direitos e da honra militar, nada importava mais do que garantir a segurança das duas mulheres mais importantes na sua vida. No entanto, o destino não sorriu para ele naquele dia. O comboio nunca alcançou os trilhos internacionais.
Don presenciou uma imagem mais fria que o gelo que lhe queimava a pele despida. Sua esposa e filha não conseguiram escapar a tempo da carruagem, quando o comboio foi atingido por um ataque aéreo. Don segurou com firmeza a mão da sua mulher enquanto ela segurava a filha no colo, mas na agitação do momento em que saltaram, ele não percebeu que estava sozinho. Quando finalmente se deu conta, a carruagem já havia virado e rolado até o fundo da ravina.
Naquela noite, ele enterrou a sua família e uma dezena de outros passageiros da mesma carruagem, a maioria mulheres e crianças, sobre a neve. A partir desse momento, a paz tornou-se um conceito estranho e distante, reservado para toda a gente, menos para ele. As noites eram assombradas por pesadelos terríveis, fazendo-o sacudir violentamente o seu corpo na cama, e acordar com o rosto encharcado de lágrimas.
Quando percebeu que nem a morte o consideraria digno, viu-se obrigado a buscar refúgio num lugar remoto. Uma aldeia esquecida por todos e acolhida pela floresta densa do Norte. Sermon West tornou-se o lar, se pode ser considerado assim, atual do Don e os seus dois novos companheiros de bar. Ambos eram ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial que, assim como Don, optaram por construir uma cabana nas montanhas acima da aldeia para escapar aos olhos curiosos dos moradores.
Ele pegou melancolicamente do que restava na garrafa de whiskey e molhou os lábios no líquido amargo. Limpou a barba densa em redor da boca e olhou pela janela de estrutura carmim. Don sempre gostou de como as janelas vermelhas sobressaiam no meio da madeira de carvalho.
Erik e Mike não tinham ainda voltado com a caça. Algo neles dava-lhe arrepios. Erik tinha uma estatura decrépita, porém forte. Aparentava ter mais idade do que tinha realmente, as rugas do rosto eram fundas e os olhos eram como duas bolas azuis de vidro sem qualquer vestígio de serem pertencidos a algo vivo. Já Mike era alto, forte, juvenil, mas com uma mente completamente perturbada - péssimo temperamento, maldosamente inteligente. Don achava que havia algo mais que um simples trauma pós-guerra para descrever aquela perversidade. Mike tinha grandes traços do que parecia um sociopata. Na altura as doenças mentais eram injustamente generalizadas como apenas loucura, e os três eram grandes loucos.
Don desconhecia seus sobrenomes e os locais onde haviam lutado. Pouco era compartilhado entre os três sobre suas vidas anteriores à guerra, por razões mais do que óbvias. Eles não eram mais os mesmos. Sabe-se que nem todos os militares tinham a intenção genuína de proteger o país. Alguns usavam a brutalidade da guerra como pretexto para revelarem o seu lado mais perverso quando não estavam sob observação.
O mais preocupante é que as suas crueldades jamais seriam reveladas pelas vítimas, e eles estavam cientes disso.Don sentia-se enojado com as atitudes dos seus companheiros, mas também não se sentia um homem normal para viver numa sociedade normal. Talvez seja tão perverso e fudido da cabeça quanto os homens que ele chama de loucos.
Os passos pesados no alpendre despertam Don de um leve episódio de dissociação e este levanta-se do sofá num grunhido. Mike entra pela porta, vestido no seu denso casaco de pêlo de urso-pardo e Erik segue por trás, agarrando cinco coelhos pelas orelhas, já abatidos.
- O tempo está a acabar. - Solta Don por trás da mesa de jantar. Mike bate com a caçadeira na bancada da cozinha e avança para Don, antes de Erick apreendê-lo com a mão no seu peito.
- E tu, meu grandessíssimo merdas, estás sentado no sofá há dias a gastar o nosso stock de álcool. Se te espremermos, dava para encher um barril de whiskey até ao cimo. - Mike cuspiu com desprezo. - Tu deixaste a mulher fugir Don! Passaste a manhã a beber e nem conseguias segurar a arma como deve ser! - Ele bate violentamente com o punho na ilha da cozinha. - Tu não estás a cumprir o acordo. Eu juro... eu juro que se eu cair por isto, tu vais comigo. Vivo ou morto, vou te torturar mais que o próprio Diabo.
- Chega desta merda. - Bufou Erik, que até agora estava calado e mais preocupado em preparar a sua caça para comerem. - Vocês não passam de dois merdas. Temos mais dois dias até o mês acabar, se eu não tiver um corpo na cave nesse tempo, não preciso de esperar por Ele porque eu mesmo enfio-vos uma bala no crânio.
- Vocês são doentios. - Diz Don em tom de desaprovação.
- Queres saber uma coisa? Tu não és melhor que nós. - Mike dá de ombros e sorri com malícia ao perceber que tinha tocado na ferida de Don. - Estamos todos no mesmo barco.
A conversa é interrompida pelo que parecia ser um chamado vindo do meio das árvores. Os três calam-se e esperam à escuta de ouvir novamente.
- Mamã!
- O qu... - Don observa os dois homens a saírem disparados, e armados, lá para fora em busca de saberem quem estava ali.
Uma figura pequena passa por entre as cascas negras das árvores, pisando a neve com os pés apenas cobertos por meias finas.
- Desta eu não esperava. - Mike baixa a arma e mete ambas as mãos na cintura. - A caça veio até nós.
- Queres corrigir o teu erro, Don? Tens aqui a tua oportunidade. - Uma linha estende-se ao longo do rosto de Erick.

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A Cabana das Janelas Vermelhas
Kinh dị[EM ANDAMENTO] Numa remota e enigmática floresta do Norte, em SermonWest, onde os segredos da natureza se entrelaçam com lendas ancestrais, Ryan e os seus amigos anseiam por escapar do frenesim das movimentadas ruas de Boston. Optam por um retiro tr...