Misterioso Quem?

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Minha amiga funciona melhor quando o rombo em seu estômago já está devidamente preenchido, então, só depois de comer pelo menos a metade da sua porção de frituras, é que ela consegue se concentrar.

— Okay. Então vamos ao que interessa. — Ela caça na carteira um envelope dobrado, meio amassado, e abre um sorriso orgulhoso enquanto esparrama o seu conteúdo pela mesa. — Identidade, carteira de motorista, seguro social e... — Ela faz uma pausa dramática antes de mostrar a última peça do seu próprio quebra-cabeça. — Passaporte.

Pego os documentos para dar uma olhada. Um sorriso se desenha entre os meus lábios ao ver o meu novo nome impresso ali, bem abaixo da minha própria foto 3x4. Barbara Vazquez Bittencourt. Eu ainda sou eu, certo? Só ganhei um novo sobrenome.

— Uau — deixo escapar enquanto folheio com carinho as páginas carimbadas do meu passaporte forjado.

Aparentemente eu já estive na França, na Bélgica e até mesmo no Quênia, mesmo sem nunca ter me afastado mais que alguns quilômetros dessa cidade.

— Pois é, eu estava inspirada — ela diz.

— O que eu fui fazer no Quênia? — Dou risada.

— Missão humanitária, safari ou meditação, sei lá. Essas coisas que gente rica faz nas férias. — Ela ri também. Enfia um anel de cebola entre os dentes, e então fala com a boca cheia. — A questão é que agora Barbie, você é oficialmente Barbara Bittencourt. E você pode fazer o que você bem entender, sem nunca mais ter que dar satisfação ao Christian.

Eu me lanço para envolvê-la em um abraço bem apertado.

— Fico te devendo eternamente, Ari.

Mais essa né. — Ela ri.

Não perdoa o fato de que eu lhe devo uma quantidade inesgotável de grana e de favores, mas eu juro que vou pagar, principalmente agora que eu tenho esse documento.

— Uau! — Eu falo de novo. Ainda não acredito no que estou vendo. — Ficou tão... real.

Eu deixo meus dedos correrem pela superfície do papel, que é tão lisa e envernizada quanto um documento original. Eu jamais desconfiaria da procedência, mas eu não sou uma especialista.

— Será que ninguém vai desconfiar?

— Assim você me ofende, Barbie! — Ela dramatiza. — Eu não gosto de me gabar, mas isso daqui não é uma identidade. É uma obra de arte. Você consegue até se mandar para um país remoto no Caribe com esse brinquedinho aqui se for isso que você está planejando.

Eu solto um riso. Balanço a cabeça em negação. O único motivo para eu ter pedido a ela essa identidade é para poder ficar aqui, construindo a minha nova vida, sem ser descoberta pelo Chris ou por ninguém. Não tem chance alguma de eu querer usá-la para me mandar.

— A propósito... O que é mesmo que você está planejando?

— Eu só quero entrar nos lugares, e talvez abrir uma conta no banco — conto para ela. — Sabe? Com o nome de Bittencourt, para poder receber dinheiro, sei lá.

Ela assente. Enfia uma asa frita de frango na boca e dá uma mordida. Seus dedos estão engordurados.

— Ok. Esse documento vai servir para esse serviço — diz.

— Tem certeza? — Levanto uma sobrancelha. — Porque eu ouvi dizer que uma identidade falsa demora vários anos para ganhar credibilidade.

Ao menos foi isso que eu vi na televisão.

— Você não tá errada — ela diz. — Uma identidade fantasma demoraria pelo menos uns dois anos até se estabelecer, talvez mais. Mas aí é que tá. Esse bebê aqui não é falso. Todos os dados e números são de verdade. Essa é obra prima da minha vida, Barbie.

— Isso significa que nem o FBI vai conseguir me pegar?

— Não força tanto — ela alerta. — Quer dizer, talvez você até passe com esse documento numa blitz pequena, mas temos motivos de sobra pra evitar problemas com a polícia, né?

Okay! Lembrete de não esquecer um pote de xixi na estante quando matar alguém — zombo.

— Ai meu deus! Você assistiu a segunda temporada dessa merda? — Pergunta sobre o seriado "Você". Assinto. — O que foi aquela reviravolta no final?

— Eu sei. Insano.

— Insano? — Ela arqueia a sobrancelha. — Fala sério, Barbie, o final foi uma merda.

— Tá. — Solto um suspiro cedendo. — Eu queria que o Will tivesse sofrido um pouquinho mais, mas não posso dizer que tenha sido ruim.

— Não foi ruim? — Ela parece chocada com a minha opinião. — O que foi que aqueles roteiristas fumaram antes de escrever essa temporada? Tipo... Qual a chance de uma pessoa realmente ser capaz de amar alguém como ele? Sabendo de tudo que ele fez? Isso é doentio.

— Sei lá. Qual era a chance de eu me apaixonar pelo Chris?

— Em primeiro lugar: O Chris pode ser um embuste nojento e um monte de coisas ruins, mas o Joe ainda consegue fazer o cara parecer um santo com asa e tudo. Ele é um psicopata, mas, né, parece que você tem uma queda pelo tipo. — Concordo, a contragosto. Ela não está errada. — Você teve notícias do Chris, por falar nisso?

— Claro que não.

Ele não tem como me rastrear. Eu mudei de endereço, de telefone, de nome. O Chris pode ser policial, mas não é um stalker. Não vai me encontrar na minha nova vida.

— Você vai me contar se ele aparecer?

— Claro! — Ela levanta uma sobrancelha, parece desconfiada. — Você não confia em mim?

— Não quando se trata do Chris — devolve. — Você tá sempre escondendo as coisas para proteger ele.

— Eu não estou protegendo ele — garanto.

— Se o Chris aparecer, você me liga no mesmo instante. Não tenta lidar com as coisas sozinha. Entendido?

— Ele não vai aparecer!

— Entendido? — Ela insiste.

— Ok, entendido — eu cedo, porque sei que ela não vai desistir se eu não concordar com as suas regras. — Mais alguma coisa sargento Ariana?

— Só mais uma — ela diz.

— O quê?

— Acho que o nosso "Misterioso Quem" acabou de entrar.

Sua observação me faz virar a cabeça para trás para inspecionar a porta de entrada do bar. De "misterioso", entretanto, o mágico em questão não tem nada. Entra de cara limpa, um sorriso galante, e sem qualquer ar de mistério. Se apoia no balcão para conversar com a Tabitha e está vestindo aquele smoking de pinguim preto e branco que eu já vi vezes demais para ser capaz de não reconhecer.

— Tá de brincadeira... — Eu deixo escapar.

Como se pudesse sentir "magicamente" que está sendo observado, os olhos castanhos do meu vizinho se encontram com os meus. Ele abre um sorriso torto e franze o cenho, igualmente surpreso por me ver nesse lugar. Não sorrio de volta, apenas desvio os meus olhos de volta para Ariana. Mafiosos não deviam fazer mágica em bar.

— A gente pode ir agora? — Sugiro. — Detesto esse cara.

— Sério? — Minha amiga reclama torcendo o nariz. — Agora que chegou a parte divertida?

— Quem em sã consciência gosta de show de mágica barata? — Zombo.

— Quem em sã consciência gosta de seriados que romantizam psicopatas? — Ela devolve acidamente. Eu dou risada.

— Tudo bem — cedo. — A gente assiste uns quinze minutos e, se estiver muito ruim, a gente vai embora.

— Fechado.

***

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