O troco

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Só de ver tanta comida gordurosa ontem, a minha pele acordou tão oleosa quanto o fogão sujo de uma pastelaria. Eu cheguei muito cansada depois do show de mágica e esqueci de lavar o rosto com minha espuma especial antes de dormir. Agora tem uma espinha tão grande no topo da minha bochecha esquerda, que eu estou cogitando sinceramente batizá-la.

Entre várias opções, acho que o nome mais apropriado seria "Anabelle", porque, claramente, uma entidade do mal deve ser responsável por essa atrocidade crescendo em meu rosto. Como não tenho o tempo necessário agora para exorcizá-la, apenas a encubro com uma camada generosa de corretivo líquido. E depois base. E depois pó. E por último blush.

Mesmo sendo sábado, o gerente arrumou um horário exclusivo no banco para atender uma cliente VIP — que sou eu, uma Bittencourt, dá pra imaginar?

Acho que eu vou ter que colocar à prova a minha mais nova identidade. Espero que corra tudo bem, porque — se não correr — o único outro jeito é acabar na cadeia.

Isso não pode acontecer. Eu não sobreviveria a uma única noite na cadeia! Não com as minhas manias de ordem e a minha alimentação regrada.

Chacoalho a cabeça. Eu não vou ser presa! Confio no trabalho da Ariana, foi por isso que pedi esse favor para ela e mais ninguém.

Sendo assim, personifico toda a Barbara Bittencourt que habita em mim, e me preparo para sair. Visto o conjunto de peças que eu comprei na semana passada. Quer dizer, que eu não comprei na semana passada, e passo um batom rosa matte.

Pronta, eu realmente me pareço com alguém cuja fortuna familiar ultrapassa a casa dos milhões, então sei que vai ficar tudo bem. Pego a minha bolsa cor-de-rosa da Moschino e desço as escadas olhando para tela do celular, enquanto peço um motorista pelo aplicativo.

— Ei, assistente! — O vizinho me cumprimenta provocando enquanto eu espero pacientemente pela minha carona.

O motorista ainda está há 1,7km de distância, então vai demorar. Acho que essa é a consequência de morar no final do planeta.

Parada perto da entrada do prédio, eu ajeito os óculos de sol de formato gatinho, e subo um pouco a cabeça para cumprimentá-lo.

Ele está de saída, e não está usando o smoking tosco de mágico dele. Confesso que ainda tento decifrar como ele fez para desaparecer e reaparecer daquela maneira no show de ontem. Tanto faz. Não é porque eu participei do show dele que tenhamos nos tornado melhores amigos repentinamente.

O fato de o hobby dele — ou trabalho, sei lá — ser fazer mágica barata em bares lotados, não o torna menos esquisito ou suspeito. Pelo contrário.

Mágico — digo em um cumprimento carregado de sarcasmo, já que vamos usar substantivos como pronomes de tratamento.

— Esperando o seu namorado? — Ele provoca.

— Só o motorista do aplicativo — falo com sinceridade. A mentira não funcionou bem da última vez.

O que me lembra de checar a tela para ver se ele está chegando. O motorista cancelou a corrida. Solto um grunhido de raiva.

— Eu posso te dar uma carona se quiser. — Ele coça os cabelos castanhos, e mostra a chave da Mercedes em sua mão direita.

— Obrigada. Eu vou chamar outro carro.

— Eu estou indo para o centro — ele fala. — E aposto que você não vai achar uma carona mais estilosa que a minha.

Solto um riso exagerado. Analiso a Mercedes antiga da máfia, parada do ouro lado da rua. É o carro dele.

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