1- Reencarnação

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Os olhos da fera não desgrudam dos meus. Que os Garms tinham certo apreço pela carne élfica, eu sabia. Fato. Mas que eram pacientes em batalha, bom, isso me é novidade. Ele não desvia os olhos de mim e eu não arrisco não fazer o mesmo. Apesar de ser nova nesse lance de matadora de monstros, eu sei bem como sobreviver. Afinal, dois meses invicta em Sklavarena não é para qualquer covarde.

O Garm parece finalmente se cansar da minha falta de movimentação. Ruge alto, fazendo com que todo o público nas arquibancadas da arena, finalmente cesse o tagarelar.

Não me parece um desafio tão grande. O monstro enorme não me parece digno de tanta preocupação. Principalmente quando visualizo bem seu possível ponto fraco.

A fera não está tão longe do cheiro do meu maravilhoso sangue élfico e em um leve momento de distração, ao se preparar para atacar, dobro os joelhos e pulo em sua direção, tão alto e forte que sequer toco o chão novamente antes de alcançar um dos quatro olhos do Garm, há quase três metros do chão.

Minha adaga perfura o olho esquerdo inferior do monstro e apesar de se balançar de um lado para o outro, ele não consegue se livrar da minha eu insistente e o sangue verde neon escorre pela sua cara horrível até que ele pare de se debater.
Até que ele para de tentar se livrar de mim.

Mas ainda não acabou, seu instinto de sobrevivência faz com que se lance contra o chão esmagando a metade do meu corpo com seus quatrocentos quilos.

— Porra! — Cuspo um pouco de sangue e puxo minhas pernas, rastejando para longe do corpo morto do Garm.

Ninguém viria ao meu resgate e eu entendi isso há um tempo. Que cairia muito e teria que me levantar sozinha, fazer meu próprio curativo e voltar à luta. Eu estava sozinha. Quer dizer, oitenta por cento sozinha, já que o ursão Alec – meu melhor amigo – está me esperando do lado de fora da arena, a fim de acompanhar-me até o local onde vamos receber nosso pagamento por eu ter saido viva da arena.

A– Foi rápido. — Ele lança um pacote de sanduíche de filé para mim.

— Acertei o ponto fraco. Terceiro olho esquerdo. — Então sem mais papo, embarcamos no veículo e partimos em busca do que passamos dois meses tentando conquistar.

A— Como sabia o ponto fraco dele? — Ele dirige rápido pela estrada de barro movimentada. Era meio-dia, estranho seria se estivesse vazia, principalmente em dia de apostas.

— Vai rir de mim se eu disser que só senti? — Ele sopra um arzinho divertido. — Então não vou dizer.

A– Eu acredito. Não é como se eu nunca tivesse presenciado sua mediunidade agindo. — Ele muda de assunto. — Sabe que Ellenix vai nos matar.

— Ela vai tentar!

O caminho até a casa de apostas da Madam Ellenix é estranhamente tranquilo. Mas toda a calmaria se esvai no momento que pisamos no local. Os guardas nos cercam no mesmo instante e nos escoltam até a sala dela.

Não é de se surpreender que ela esteja extremamente irritada, ela demonstra em sua cara e na enorme quantidade de erva de gato espalhada pela sua mesa.

Seu rosto felino e bigode eriçado deixam sua aparência ainda mais bizarra. Não poupo agressividade ao bater as mãos sobre a mesa, espalhando a erva e segurando um espirro.

— Eu venci. Como combinado.

M– Eu vi. Inacreditável o que uma elfa do fim do mundo consegue fazer. Emiray era minha melhor arma.

A– Emiray? Deu nome a um Garm? Como se ele fosse seu filhotinho? — A mulher gato rosna, cuspindo uma bola de pelo aos pés do elfo.

M– Ele era meu filhotinho. Emiray era meu favorito e você o matou. — A mulher se levanta e dá a ordem aos guardas, que nos seguram pelos braços.

— Nós fizemos um trato. — Não me debato, apenas olha ao redor, analisando o local e procurando pela minha melhor chance, me mantenho calma.

M– Deveria saber que gatos não são os melhores amigos do homem.

A felina não espera o meu próximo passo, na verdade, além do ursão Alec, ninguém espera. A água espalhada pelos aquários de peixes múltiplos na sala começa a sair dos recipientes. Formam bolhas enormes e flutuam sobre a sala. Até que, tomam forma.

Um enorme dragão de água entra pela garganta do soldado que me segura, o afogando em desespero, até que ele me solta e caia semimorto no chão. O mesmo acontece com o outro e a felina, em um ato de covardia, corre e se esconde no canto. Estendo a mão, parando o dragão no ar.

— Nosso acordo, Madam Ellenix: eu sobrevivo todas as etapas da arena e você me dá o mapa. O Garm era a última fase e eu o matei, foda-se se ele era seu bebê, seu filhote ou que merda você fez àquele monstro. Eu venci e não quero machucar ninguém. Me dê o mapa e eu lhe deixo viver.

M– Tua fama lhe precede elfa miserável.

— É bom que saiba disso, assim não tem a ideia estúpida de tentar me enfrentar. — A Madam vasculha uma gaveta em sua mesa e tira de lá um pergaminho. Um mapa para algum lugar do mundo.

M– O que quer que queira em Drachen, elfa atrevida, espero que encontre. Mas que o carma venha atrás de você e lhe faça pagar por ser tão arrogante da pior forma que os de Drachen possam proporcionar a você. — A felina cantarola — Eu lhe amaldiçoou.

A água volta aos aquários e após pegar o mapa, me viro deixando o local com minhas últimas palavras.

— Como se eu temesse o miado de uma gata assustada.

[...]

"Amaya" — Uma voz invade as janelas fechadas do veículo. "Amaya" — Meu corpo se remexe automaticamente no banco traseiro e abraço minhas pernas.

"Salvadora, acorde. Venha até mim Amaya. Venha até tua casa, até os teus, até sua família"

Os meus gemidos assustados acordam o ursão que dorme nos bancos da frente. Ele acende uma vela e olha para trás, observando eu me contorcer e já percebe que aquela era uma daquelas noites.

Uma noite onde sua amiga tinha pesadelos, ouvia uma voz melodiosa em sua cabeça e acordava gritando e se debatendo.

"Nossa salvadora vem aí. Venha me buscar, pequena Drachen." — Uma música irritante faz com que eu escape do sono rem, mas a voz me acompanha — "Deixe-me entrar salvadora, deixe-me guiá-la até o sofrimento."

Os gritos não assustam mais o meu amigo elfo e ele já está preparado quando aperto forte seu ombro direito. Ele me oferece um pano úmido e um copo de água.

Me ajudar nesses momentos virou sua função.

A– Ela outra vez?

— Ela está mais insistente. Deve ser por que estamos chegando perto.

A– Tá piorando. Geralmente era apenas uma vez no mês, depois uma vez na semana e agora você sonha um dia sim e um dia não.

— Não precisa se preocupar com isso. Temos uma missão.

A– Se não os encontrarmos, o que fará Amaya?

— Prefiro não pensar nessa possibilidade.

A– Mas ela é real. O que fará se não os acharmos?

— Acharemos.

A— Amaya! — Seu tom de voz soa repreensivo.

— Nós vamos, mas se não conseguirmos... se nossa jornada estiver sendo em vão, então não haverá mais nada para mim.

A– O que quer dizer com isso?

— Que devemos seguir com esperança, porque se falharmos, eu não terei um futuro. — Sua expressão chocada é o suficiente para me fazer deitar outra vez, tentando e falhando em voltar a dormir.

A Lenda do Dragão BrancoOnde histórias criam vida. Descubra agora