Capítulo 2

12 0 0
                                    

Bento

     Encaro as páginas amareladas tentando me concentrar somente nisso

     O vento da janela aberta balança as cortinas, o que balança as páginas do livro e o cabelo do meu irmão gêmeo

     Olho para o mesmo e ele olha para mim

     Nós temos uma personalidade tão diferente que às vezes me pergunto se somos irmãos e, ainda mais, se somos gêmeos

      Estou deitado na cama, lutando contra os medicamentos para não adormecer

- Quer ver tv? - ele pergunta, indicando a televisão

      Balanço a cabeça, recusando

- Quer que eu cite um poema? - ele pergunta

      Balanço a cabeça, aceitando

- Rosas são vermelhas, violetas são azuis e eu sou tão lindo quanto alguns - ele diz

- Picasso chora - digo

     Ele franze a testa e eu percebo o que digo. Picasso era pintor. Quimioterapia

- Posso te contar a história de quando eu atravessei um rio?

- Pode

      Ele sempre se esquece que eu sempre estou junto das suas aventuras. Então eu já sei todas as histórias deles, até quando eu descobri a leucemia eu continuei nas suas aventuras, como ele nas minhas

     Ele começou a falar, fingi prestar atenção, mas não deu muito tempo porque eu acabei caindo no sono

     •≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠≠•

         Acordo sozinho, o quarto do hospital com uma brisa do pôr do sol

    Suspiro, e pego o notebook que está na mesinha de cabeceira

    Entro no primeiro aplicativo que vejo. Podemos dizer que o câncer não só me destruiu fisicamente como
psicologicamente: eu estou vendo posts de 2016 ; estamos em 2022. Qual é o meu problema?

    O problema é que eu gosto de ficar preso no tempo, gosto de ver as coisas do passado e só ficar nele

    Depressão? Talvez, pergunte para o meu psicólogo, ele deve ter a resposta -eu não tenho psicólogo-

   A quimioterapia me gasta muito
   No começo era apenas uma anemia grave. Hoje em  dia espero na fila de transplante por uma medula

    Escuto batidas na porta, a pessoa não espera eu responder, somente entra

    Minha enfermeira preferida entra com uma bandeja

- Remédios da tarde- Joana diz, fechando a porta com o pé - Como está?

      Ela é mais velha que eu mas não tão velha. É bem divertida. Seus cabelos vermelhos vivo -claramente pintado- num coque super desarrumado

- Na mesma - respondo - Esses dão sono?

     Ela olha para os remédios

- Talvez...

    Sim, eles dão

    Tomo todos os comprimidos de uma vez e bebo um copo d'água

- Seu irmão está na cafeteria - ela comenta - Ele me disse que estava aqui, mas você adormeceu, eu disse que era normal

   Assinto. O Matias fica aqui praticamente todos os dias. Nem me surpreendo

- Sabe o que vai ter depois da manhã? - ela pergunta, se sentando na cadeira ao lado da minha cama. Ela, às vezes, faz isso. Começa a conversar comigo do nada - Vão fazer umas cenas no hospital. Os pacientes vão dar a sua história, tipo na Culpa é das Estrelas, sabe? Só que é para câmeras, não pra uma roda. Sua mãe colocou o seu nome

     Ah, legal

     Quando você é uma pessoa saudável você vai contar a sua história normal. Como é a sua vida. Mas quando você tem câncer, eles querem a história do seu câncer, não a sua história

   Não quero dar comentário nenhum. Quero sair desse hospital o mais rápido possível

- Humm - digo -, legal

    Os ombros dela se curvam

- Vai ser legal, Bento - ela diz, e se levanta - É bom pra você, vai sair um pouco dos livros

   Agora ela não é a minha enfermeira favorita. É desfavorita -se essa palavra não existe, eu a inventei -

   Qual culpa eu tenho se eu amo ler? Não estou fazendo nada para ninguém. As pessoas pensam que, só porque eu estou praticamente cada segundo lendo, eu sou um doente mental.

   Joana sai do quarto e eu suspiro

   Vou fazer o contrário que ela disse, peguei o livro que estava na mesinha de cabeceira e entrei no romance clichê

WHITE ROSE GARDENS · HELOISA CARDOSOOnde histórias criam vida. Descubra agora