Quando anoiteceu Ravena andou em passos lentos até o acampamento, de tanto chorar cansou,de tão cansada sentiu-se anestesiada. Parece que dentro de si estava oco.
Antes de ir para seu quarto, passou na sala onde a pouco havia presenciado a morte de seu demônio. Ravena ficou encarando o altar e adaga - agora limpa e em cima da mesa de mármore. Encostou a cabeça na porta e relembrou do olhar de Ian, ele esperava por aquilo.
Fechou a porta e andou até o quarto. Tomou um banho, as lágrimas desceram. Não houve escândalo nem gemido, a dor apenas escorreu pelos olhos.
Ravena depois de vestida se jogou na cama e cobriu-se até o queixo, ali queita e olhando para a parede a acabou relembrando das vezes que ali esteve com Ian ou com a mãe. E lembrar doía.
Ivis bateu na porta do quarto de Raven e com a chave que tinha abriu. Ela nem se virou, seus olhos continuaram vidrados na parede. Ivis foi paciente, sentou-se na cama e esperou. Esperou porque sabia que deveria esperar e havia falhado muito com a filha, esperou porque no quarto em que dorme não existe mais Ely, esperou porque sabia que sua filha era apaixonada pelo demônio. Esperou porque a amava.
- Você sente saudades dela? - Raven soltou por fim.
- Agora mesmo estou sentindo! - respondeu.
- Como se sente?
- Destroçado.
- Agora pense em mim, perdi não só minha mãe como o demônio.
- Ravena, você me deve explicações, não é?
- Sim! - ela sorriu. Eram dois loucos, ela e Ian, tiveram um romance ali debaixo do nariz de todos.
- Judith disse que você tinha muita coisa mesmo.
- Conto amanhã, tudo bem?
- Entendo. Então amanhã pela manhã?
- As 9h00min.
- Esperarei.
- Certo.
Ivis levantou-se e beijou a testa da filha. Respirou fundo ao fechar a porta e começou a chorar. Nunca foi bom com perdas. Mas quem mesmo consegue ser, hein?
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Ravena bateu na porta e entrou, seu pai já estava sentado a esperando. Em Ivis, a barba por fazer e as olheiras eram marcantes. Ravena sentiu tristeza pelo pai, mas tentou manter-se firme e sentou-se de na cadeira de frente para ele.
- Pode começar! - ele tentou sorrir compreensivo. Mas estava um pouco assustado.
- O que falar? - Ravena segurou o choro.
- Do começo, minha filha.
Ela sorriu e chorou, não tinha forças para segurar a dor.
- O primeiro ocorrido foi a ligação refeita. Eu desmaiei, lembra? Aquilo foi uma ligação que aconteceu. Eu sentia nele familiaridade, achava muito estranho. Os dias foram passando e eu soube por Judith e minha mãe a verdade. - Ravena respirou e engoliu em seco, relembrar de tantos momentos doía.
- A verdade...?
- Elas haviam procurado nos livros da biblioteca sobre reencarnação, amor, destino,essas coisas. Descobriram que eu era predestinada ao Ian e ele a mim.
Ivis coçou a cabeça e se ajeitou na cadeira.
- Foi um choque para mim. Mas eu fiquei feliz de alguma forma, eu já sentia algo por ele - ela escondia que se relacionavam - Em todas as vidas eu sempre fui dele e ele meu, mas o final de cada uma delas seria uma consequência nossa.
- Entendo.
- Eu o amei desde a primeira vez que o vi, mas so descobri isso quando o vi me ajudar, ajudar ao acampamento, quando eu necessitei dele e ele de mim.
- Sim...
- Ele não era um simples demônio. Não foi a toa que eu o defendi.
- Não, não foi...
- Você só vai dizer isso?
- O que mais quer que eu diga? Eu posso ser cruel, Raven. Mas tenho sentimentos, sei amar e amo você. Seria o fim de mundo para mim saber disso antes, eu o mataria e lhe purificaria. Mas veja só... - Ivis apoiou a cabeça na mão - estamos no fim. Já passamos pelo sufoco, por uma batalha, por milhares de provações. Perdi o amor da minha vida e você o seu. Na hora da dor eu entendo você e sua dor, só assim para eu entender. Sei que é terrível, mas é nas piores circunstâncias que as vezes a ficha cai.
- Está doendo tanto. - Raven desabafou chorando mais ainda.
- Está. - Ivis virou o rosto para a janela ficando de pé. As lágrimas molhavam seu rosto - O acampamento está sendo desmontado.
- Iremos viver junto aos outros?
- Sim. Você conhecerá pessoas legais.
- Rá! - ela sorriu nervosa.
- Você se sairá bem?
- E você? - ela quase gritou.
- Dará tudo certo - ele falou friamente.
- Certeza?
- Ravena, você não veio para questionar como irei ficar! Eu que deveria estar lhe julgando.
- Não mesmo! - ela rebateu - Julgue aos espíritos maiores, ao destino. Não a mim.
- Mas foi você quem não me contou nada.
- Lembra do que disse se eu te contasse?
- Okay, okay! Já pode se retirar.
- É assim que me trata? Sobrou apenas nós dois. Você pode ser O Chefe Maior, mas eu não morri e continuo sua filha.
Ivis esmurrou a mesa e foi em direção a Ravena, a abraçou forte e desabou ainda junto a única pessoa que sobrou para si.
- Desculpa, desculpa... eu estou tentando não enlouquecer. Tudo ficará bem porque Deus nos abençoará gradativamente mais e voltaremos a viver em meio a todos aqueles que deixamos para trás.
As únicas pessoas que sobraram da família, choravam. A dor era grande o suficiente para escorrer e escorria. Era como ácido, devastadora.
Do outro lado, em meio a humanos, a rotina prosseguia normalmente, longe do barulho da urbanização, em uma fazenda nos arredores da cidade um corpo. Era um homem. As pessoas que moravam na fazenda se aproximaram para ver, era um menino homem. Dormia ou estava morto?
- Chuta ele! - uma menininha falou baixo para o irmão.
- Não, filhinha! - disse o pai dela.
Ajoelhou-se perto do homem e checou a pulsação. Estava vivo. O balançou e ele virou-se. Abriu os olhos vagarosamente. O azul do céu refletiu em seus olhos e ele quase vomitou com uma dor no estômago.