Ruina domus pecto

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  [TW: temas sensíveis, assassinato]

  Não costuma ser fácil se manter firme quando não se tem motivos para tal. Normalmente as pessoas precisam de algo pelo que lutar, mas era estranho pensar que alguém que perdera tudo o que acreditava pudesse ficar de pé. Essa teimosia irritava Shibusawa diante de Atsushi, mas não foi (apenas) aquele garoto que decidiu persistir em ficar de pé quando tudo desmoronou.

Aquela teimosia também se aplicava a Dostoievsky. Quando tudo desmoronou, seu peito foi preenchido por uma estranha determinação. Não era algo altruísta. Que fizessem o sinal da cruz! Fyodor jamais foi alguém altruísta. Aquela teimosia errática e incansável, surgiu de um sentimento extremo oposto ao altruísmo, ela surgiu do ódio, da raiva e de uma fervente onda de desprezo. Em outras palavras, ele não temia o inferno, a morte ou a culpa. Não mais. Por algum motivo, e por mais profano que fosse, ele se sentia vivo e desapegado de qualquer lei, fosse dos homens ou de Deus. Ele não hesitava, não tinha motivos para isso.

Se os pecadores têm que pagar, que pague. Ele era um pecador, mas os seus algozes também eram.

Ele chegou ao teatro com alguns minutos de antecedência. Carregava o buquê de flores como se fosse um bebê recém nascido. Ele deveria sorrir. E assim o fez. Talvez tivesse sido melhor que Nikolai estivesse fazendo esse trabalho, ele era melhor com pessoas, mas Fyodor tinha que encontrar Atsushi por conta própria. Ele tinha que manter a encenação. Que apropriado, pensou, fingir em um teatro. Finalmente estava no cenário certo.

Subiu as escadas até chegar aos camarotes enfeitados por algumas guirlandas. Ele encontrou Mary e Percy se acomodando no local alguns minutos antes do balé começar. Ela costumava estar sempre no quinto camarote, o que estava acima do palco, e o outro lado do teatro estava em manutenção, provavelmente vazio. Ele se certificou de que estava com uma expressão amigável antes de se juntar a eles para entregar o buquê.

Eles trocaram comprimentos e Fyodor ofereceu rosas para Mary.

- Também são um presente de Nikolai - ele disse quando ela as pegou delicadamente.

Ele se recordou no pilar ao lado da estrada, as cortinas estavam abertas e os vasos haviam sido posicionados próximos às cadeiras, sofisticadas e antigas. A plateia estava cheia, o que era bom, ele não teria problemas com tantas pessoas, mas seria um pouco mais difícil encontrar Atsushi. Ainda existia aquela urgência.

- Vocês dois vão fazer falta, nunca pensei em ver duas pessoas tão diferentes trabalharem tão bem juntas - Disse Percy sentando em uma das cadeiras da extremidade do camarote.

- Espero que isso não traga nenhum problema, é uma saída muito repentina, mas é primordial voltarmos para Moscou o quanto antes.

- Não há problema algum, um pequeno atraso nas próximas apresentações, mas nada além disso - Mary respondeu - Mudando de assunto, não quer se juntar a nós? Meu irmão decidiu ficar em casa então temos uma cadeira sobrando aqui.

- Não vejo porquê não.

- Como qualquer russo você deve adorar balé, não é? - disse Percy.

- Um pouco, mas não vi mais de três ou quatro recitais durante a vida.

Mais uma mentira. Estava começando a se tornar um hábito.

- É um número considerável.

Fyodor se sentou na terceira cadeira ao lado de Mary. Se sentiu satisfeito por estar tudo correndo bem, mas ainda não vira Atsushi, ele era uma prioridade. Ele sabia que Dazai estaria no teatro naquela noite, ele também era uma prioridade. Agir de forma sutil era essencial, então ele calculou as próprias palavras.

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