Zaya - 7 anos atrás

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Está caindo uma tempestade hoje. O vento gelado atinge a minha pele com tanta força que chega a queimar minhas bochechas. Eu estou parada do lado de fora da cabana médica do nosso vilarejo e mesmo com a porta fechada os gritos da minha mãe conseguem ser ouvidos.

Lina era minha irmã mais nova, ela tinha somente 3 anos e morreu de desnutrição. Deixávamos de comer para dar a ela, mas mesmo assim era tão pouco que não foi o suficiente

— como você está?

A voz familiar me fez olhar para baixo e eu o observei. Gabe era o meu melhor amigo, crescemos juntos e ele sempre estava do meu lado pra tudo

— ela morreu, como acha que estou?

— não é sua culpa

— eu podia ter tentado mais

— você só tem 17 anos Zaya, não precisa carregar esse peso nas costas

Ele se aproximou e passou a mão no meu rosto, secando as lágrimas que caiam

— mais quantas crianças irão morrer por não ter o que comer?

No começo do ano o nosso vilarejo tinha cerca de 100 famílias, agora éramos somente 30. A gente tentava plantar alguns alimentos, mas as chuvas eram muito constantes e muitas vezes não conseguíamos colher nada. Os animais também morriam de fome, eram poucos que conseguiam ter criações já que não tinha alimentos nem para nós mesmos e além disso os impostos eram tão altos que não sobrava nada para gastar em mercearias

— até quando vamos viver assim? — questionei o encarando

Sai caminhando pela chuva em direção a minha casa. O meu vestido velho se arrastava pela lama e as minhas botas encharcadas afundavam no chão. Eu queria estar de luto, mas a única coisa que conseguia sentir era raiva por morar em um lugar tão negligenciado.

Quando a guerra entre o reino do fogo e da água acabou graças ao casamento do Rei Edmundo com a princesa Valentina, os reinos prosperaram. Minha bisa contava histórias quando eu era criança de que o próprio rei Thomas vinha até aqui verificar se as pessoas tinham alimentos, e quando ele morreu seu filho continuou o legado, depois seu neto e então uma fatalidade mudou todo o curso da linha de sucessão e um tirano irresponsável e mimado assumiu o trono, causando a queda do reino para a miséria.

O Gabe correu atrás de mim até minha casa e quando passei pela porta ele entrou logo em seguida

— descansa um pouco, sua mãe vai precisar de você

O Gabe era um cara bonito, ele tinha cabelos loiros compridos que estavam presos em um coque mal feito com os fios molhados grudando em seu pescoço, os olhos castanhos claros. Era o irmão mais velho de 2 garotinhas e cuidava dos avós ja que não tinha mais os pais. As pessoas diziam que a gente ia se casar e eu sabia que ele gostava de mim, mas não conseguia enxergar um futuro juntos.

— Zaya eu sei que não é o momento certo, mas você é minha melhor amiga e não suporto te ver assim — ele colocou a mão no meu rosto, tirando os fios que pregaram na testa — casa comigo, vou dar meu melhor para você ter uma vida digna

Abri e fechei a boca várias vezes sem saber o que responder. Eu o amava, ele era como um irmão para mim, só que eu não nos imaginava assim. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, nós fomos interrompidos pela porta da frente se escancarando e dois vizinhos entraram correndo

— o que aconteceu? — falei me afastando do Gabe que eu nem tinha percebido que se aproximou tanto

— sua mãe Zaya, ela ingeriu toda a cicuta que encontrou e ...

Não o deixei terminar de falar, apenas sai correndo e voltei para a cabana dos curandeiros. Eu trabalhava aqui desde os 13 anos, sempre fui muito curiosa e a senhora Dove me ensinou tudo que sabia.

Assim que passei pela porta eu vi o corpo da minha irmãzinha coberto por um lençol branco e ao lado minha mãe já estava morta. Tantas emoções passaram pela minha cabeça naquele momento e eu queria chorar, queria gritar e quebrar tudo, mas ao mesmo tempo eu não conseguia fazer nada além de ficar parada

— eu sinto muito querida — a senhora Dove disse pegando minha mão — estamos com você para tudo que precisar

Olhei para a senhora segurando minha mão e naquele momento todo o ar parecia ter sido extinguido do mundo. Eu sentia a raiva queimando pelas minhas veias

— preciso ir — respondi me afastando

Eu não tinha família, meus pais e minha irmã estavam mortos graças a miséria que vivíamos. Nosso vilarejo perdia mais pessoas a cada dia e alguém tinha que fazer alguma coisa

— Zaya ...

Corri para casa sem me importar com a chuva e peguei uma bolsa velha. Tudo que eu tinha cabia ali, um vestido, duas calças velhas e uma camisa. Não tinha absolutamente nenhuma comida, então ignorei o barulho da minha barriga.

Abri uma caixa que meu pai tinha ganhado de um familiar e olhei para a adaga cheia de poeira. Levantei a lâmina afiada em direção a luz para observar os detalhes e em seguida a enfiei no cinto que estava em minha cintura

— o que você está fazendo? — o Gabe questionou me observando enfiar coisas na bolsa

Eu não o respondi, apenas peguei minha capa e sai de casa em direção ao nosso pequeno celeiro

— Zaya fala comigo

Eu não queria falar, estava cega pelo turbilhão de sentimentos que passava pelo meu corpo e precisava sair dali bem rápido. Após colocar a cela subi no cavalo e olhei para meu amigo uma última vez

— adeus Gabe, eu sinto muito

Sai em disparada em direção as montanhas e ele ficou lá parado me observando

— onde você vai? — gritou de longe, mas não o respondi

A cada centímetro mais longe o meu coração ficava um pouco mais frio. Guardei o luto em um cantinho bem trancado e jurei que só me permitirá chorar quando a adaga que carregava estivesse cravada bem funda no coração do rei.

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