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— Colocou seus instrumentos de tortura, querida? Sua máquina de escrever? Pegou todos os livros? Certeza que não está esquecendo de nada, filhinha? - disse minha mãe, calmamente. Ela fez questão de me acompanhar enquanto eu terminava de organizar todos os meus pertences nas malas. Arrumar minhas coisas para voltar à escola de fato torna tudo mais real. Já passa das sete da noite na Mansão Addams e a essa hora, estarei de volta ao meu antigo dormitório com Mãozinha e com Enid. Ainda não sei o que pensar sobre, mas talvez eu esteja com um pouco de... saudades. Só um pouquinho.

— Sim, mãe. Já tenho tudo que preciso, não esqueci nada.

— Não sei como serão as coisas sem você aqui em casa de novo, filhota. Mas não tenho sombra de dúvidas que é o melhor a ser feito. - ela responde, oferecendo seu sorriso característico.

Não respondo nada, mas ela continua me olhando com carinho e compreensão e deixa o quarto, me deixando a sós. Ela deve saber que eu, no fundo, concordo com ela. Mas jamais deixaria ela perceber isso. Talvez eu tenha falhado miseravelmente nessa parte.

Sento em minha cama e resolvo olhar minhas mensagens. Vejo a clássica mensagem de Enid, que já virou parte de meu cotidiano. Ela sempre faz questão de me mandar mensagem até pelas coisas mais insignificantes. Desde um filme que ela assistiu e quer desesperadamente dar sua crítica para alguém a áudios dela chorando por causa de alguma esmaltação que não deu certo. Tenho tentado não ser tão grossa com ela, por isso respondo na maioria das vezes com uma resposta coringa, que provavelmente não deve ser interpretada como algo grosseiro: "Que droga, Enid."

Não me recordo da última vez que recebi uma mensagem do Número Desconhecido, já que no último mês não recebi nenhuma mensagem, então não fiquei surpresa ao ver que não tinha outra dele. Talvez ele tenha se cansado de passar vergonha com aquelas mensagens deprimentes e sem originalidade. "Vou cortar sua cabeça e ficar assistindo enquanto ela jorra sangue". Ele com certeza não deve ter conhecimento sobre minha grande admiração por guilhotinas e da honra que seria para mim, como apreciadora, ser morta por algo tão brilhante e engenhoso quanto esse aparato. Mas me surpreendo quando vejo uma bolinha vermelha em uma das extremidades do aplicativo chamado Instagram, o qual Enid tomou a liberdade de criar uma conta para esta que vos escreve. Clico no ícone e entro na DM, e no topo dela, uma mensagem do garoto que eu tentei evitar durante todo o período de "recesso escolar".

Franzo o cenho e abro a conversa.

"Wandinha Addams está mesmo em um aplicativo sociocomunicativo desprezível e viciante?"

Que pergunta idiota. Detesto perguntas idiotas. E a maioria das pessoas que as fazem.

"Você ainda tem dúvida ou prefere que eu deixe mais óbvio?"

"Beleza, já saquei, estressadinha. Posso perguntar por que você resolveu criar uma conta em um app que você disse odiar tanto?"

"Eu não criei essa conta, começando por aí. Enid me obrigou a baixar e ela criou. Eu não me desesperei tanto ao ponto de baixar algo que só vai sugar minha inteligência e me prender nessas telas, se quer saber."

"Olha, que bom que eu tive tamanha sorte de ser digno de você ter me respondido e não me ignorado, como você fez durante todas as férias."

"Eu lhe disse que não ligaria."

"Você não disse nada, na verdade, então eu supus que teria mínimas chances. Mas fala aí, você volta amanhã?"

"É claro. Não é tão fácil quanto parece achar uma escola que aceite minha personalidade um tanto excêntrica, Thorpe."

"Então creio que eu te vejo amanhã, Addams."

"Mal posso esperar por isso. E espero que saiba que isso deve ser lido com uma entonação irônica."

"Também sinto sua falta, Addams."

Visualizo a mensagem, mas não a respondo. Xavier já teve minha atenção por tempo mais do que o suficiente por hoje. Desliguei o telefone e me deito na cama, esperando limpar um pouco a mente, quando Mãozinha começa a me cutucar, como se quisesse saber exatamente o que acabou de acontecer. Praguinha enxerida e fofoqueira. Provável que só queira ter mais um assunto para contar à Enid sobre os "avanços de minhas relações interpessoais".

— Não aconteceu nada. Agora vá passar seu hidratante e vá descansar antes que eu decepe um de seus dedinhos delicados e o pregue na parede.

Mãozinha então, segue quieto até a gaveta da minha escrivaninha e fecha, provavelmente irritado por ter falhado com seu objetivo. Que seja. No dia seguinte, voltaremos à Nunca Mais e ele terá de deixar sua birra de lado. Além disso, essas crises duram pouco tempo, para minha satisfação, já que não suporto ver Mãozinha determinado a testar minha paciência apenas para irritar, já que ele sabe que isso só me deixa mais longe de falar algo pessoal.

Depois de concluir minha higienes noturnas, me deito automaticamente em minha cama, esperando pegar no sono o mais rápido possível. Não costumo admitir isso, mas realmente estou interessada para o próximo semestre de aulas. Isso realmente deve estar me afetando, já que antes de dormir, ao invés de repassar os gritos do Feioso em sessões de tortura na minha mente, fiquei apenas imaginando como será o dia de amanhã. E eu nunca fiz isso antes, porque geralmente não espero estar viva para presenciar o dia de amanhã.

Trust - Wandinha e XavierOnde histórias criam vida. Descubra agora