Eu senti fome

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Sentada na minha cama quente e confortável enquanto o céu parecia quente e confortável como um grande colchão de algodão cinza e o vento frio cortava minha pele lentamente me deixando só músculo, depois só ossos e por fim nada, eu senti minha barriga gritar, um grito surdo, abafado, não daqueles que só cachorros ouvem, era mais como algo que não existe, algo que você sente se aproximando, arrepiando cada pelo do seu corpo. Tudo se tornou poroso, como se eu fosse uma particula num grande quadro negro, dos que se usa giz de gesso, não piloto. Buscando abafar a fome e não matá-la procurei uma atividade para me entreter, andei calmamente até o meu armário, passos lentos enquanto meu corpo perdia o peso de existir e mergulhava num oceano de sangue quente, minha visão turva não servia de muito, me guiava apenas pelo costume, peguei minha bolsa de cores e voltei a me sentar na cama, sem gravidade nenhuma, sentar no local fofo era mais divertido que o normal, eu ri e analisei meus diversos tons de vermelho, buscava algo que ilustrasse como me sentia naquele momento. Não me sentia uma femme fatale então pus o gabriela de lado, também não me sentia muito na década de 40 esperando meu marido com um bolo recém saído do forno enquanto botava as crianças pra dormir, então guardei o carmim, e logo dei de cara com minha alma completamente desprotegida e brilhando por mim, o escarlate, só de tocá-lo tudo tomou uma vibe noir, agora nada mais era fofo e quente, a vida tornara-se cinza e ríspida, como um diretor muito rude, suspirei encantada com a cor e decidi que seria ela a escolhida. "Deve-se ter cuidado ao usar essa cor" pensei comigo mesma, "afinal uma camada só te torna uma femme fatale num filme noir, e não é isso que eu quero" passei então a segunda camada e por Deus, lá estava a perfeita sensação de sangue, na pouca luz perfeitamente posicionada do quarto, meus dedos pareciam mergulhados em sangue, minha pele branca tornou-se mármore, o tom da noite me deixou extasiada, e olhando para a ponta de meus dedos, enquanto minha barriga rasgava senti a chuva caindo, comecou tímida, serena, mas logo tornou-se violenta, entrando pela minha janela, molhando meu colchão e nesse momento senti minha boca salivar, pude ver claramente sangue jorrando, não sabia de onde, não sabia em que, mas vi em minha mente muito sangue, sangue escarlate, em minhas mãos, sob minha pele, por dentro do meu corpo, senti minha mão apalpando carne fresca, era desuniforme, molhada, batia ainda, podia sentir, eu olhava ele pulsando em minha mão enquanto eu o apertava, minha barriga esbravejou novamente, sedenta, meu coração corria como o que repousava em minhas mãos, então sem olhares sob mim, sozinha no meu quarto podendo desejar qualquer coisa, eu trouxe o coração a minha boca e dei uma mordida tão grande quanto pudera, a carne sangrou com se estivesse viva, o sangue deslizava pelos meus braços marcando para sempre o quão profana eu era, mas não me arrependi, engolia o sangue compulsivamente enquanto comia a carne as vezes sem mastigar, desesperada pela sensação de satisfação, queria me sentir cheia. Após devorar minha refeição, de frente ao espelho do armário, no escuro eu parecia outro alguém, apenas uma sombra, o sangue tornou-se escuro e minha barriga descansava no mais profundo silêncio. Olhei para a janela coberta de sangue, levantei e o mundo era escarlate com uma lua gigante brilhando vermelho no céu. Eu sorri e voltei para a cama, com as unhas agora secas guardei minha bolsa de esmaltes, forrei a cama e fui procurar algo para comer, meus devaneios me levam a lugares perigosos, dessa vez cogitei ser canibal, a fome faz coisas estranhas com as pessoas, principalmente com pessoas que já são estranhas no seu normal, olhei para os meus gatos e eles me olhavam como se soubessem o que fiz, no escuro da cozinha parecíamos feras sedentas decidindo apenas no olhar se lutaríamos até a morte ou andaríamos juntos, essas trocas de olhares sempre me deixam nervosa, acendi a luz rápido e os três voltaram a ser só meus gatos, ri de novo, é só o que posso fazer quando meu cérebro me leva a esquisitices.

Cenas escritas no caféOnde histórias criam vida. Descubra agora