Minha espinha

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Mais uma noite de chuva. Numa vã tentativa de pegar no sono naquele ambiente tão hostil repouso a cabeça na janela do ônibus, a cada pancada dada de encontro ao vidro frio minhas têmporas doem mais. O motorista tem pressa, eles sempre tem pressa, especialmente a noite, nossos medos ficam mais intensos à noite, você pode senti-los no ar, aquele ar pesado e espesso que se recusa a aliviar os pulmões, pelo contrário ele entra cortando sua garganta, abafando seu sossego, dilacerando. O motorista sabe disso, ele sente no cangote a presença das sombras que se penduram nos ombros dos aflitos, vejo claramente em sua postura que o pobre coitado está por um fio, duas almas a um passo da loucura. Do lado de fora a chuva grita, as ruas se tornam lisas e brilhantes, como um belíssimo rio de piche, ao me imaginar deslizando sobre a neve preta sinto um vislumbre de paz, o suficiente pra me fazer suspirar, minha parada se aproxima. Levanto-me mais cansada do que estava quando sentei, minhas costas doem, eu sinto essa pressão na coluna vertebral, como se todas as juntas entre meus ossos se tornassem chiclete endurecido, não se movem, não amortecem nada, pelo contrário elas empurram os ossos, querem sair de mim, meus ombros caem mais, tento me endireitar antes de descer mas não consigo, tento ajeitar a postura e meu pescoço dói, então o ônibus para, a chuva para com ele, ao descer o primeiro degrau a pressão do movimento faz meus ossos saltarem, a cada degrau eu desejo mais e mais não ter corpo algum, não ter formato. Como dói, é uma dor surda, incômoda, ela pressiona, mas não corta a pele, ela não liberta.

Caminho pesadamente até minha casa, as ruas escuras me fazem querer mergulhar nas poças de água, ficar lá para sempre boiando, sem peso, sem gravidade, sem dor. Chego no portão de casa, entro e subo as escadas, minha coluna faz minhas pernas doerem, eu sinto dor, muita dor. Em casa me movo mais confortavelmente, a pressão parece ceder ao conforto do lar, como se eu pusesse as mãos em minha espinha e desse um delicado puxão, a esticando, tornando-me mais confortável na pele que habito. A água gelada do banho faz a dor desaparecer, mas se eu refletir profundamente ela nunca esteve realmente aqui. Me deito na cama, roupas limpas, lençóis de uma semana de uso, manta grossa, ventilador ligado, quarto escuro, a janela com uma brecha perfeita me permite escutar o mundo lá fora, essa é a trilha sonora que me põe para dormir, observo gotas da chuva escorrer pelo vidro formando linhas um pouco curvadas, como colunas num perfeito arco, em alguns minutos pego no sono.

Sonho com algo que não consigo ver, como se estivesse vendo o mundo atraves da janela do ônibus, ele está muito rápido, a chuva cai pesadamente mas não ouço nada, a janela está embaçada, através dela só vejo borrões e luzes sem formato algum, dentro do ônibus a escuridão se faz presente em todos os cantos, me equilibro com dificuldade, em uma das curvas sinto algo me olhar no canto esquerdo perto do motorista, não consigo ver quem ou o que é, mas também não posso sair correndo, então apenas paro e olho de volta, o ônibus para, olho o escuro e ele olha de volta, estranho, não sinto minha coluna arrepiar, é um vazio estranho o que sinto agora, sei que é um sonho, só pode ser um sonho, me sinto leve, como as gotas da chuva, não sinto dor nenhuma, volto a estranhar, a porta do ônibus abre, não chove mais, olho para o lado de fora e vejo a pequena ponte que desci algumas horas atrás, desco os degraus ainda olhando para o escuro, passos leves, me sinto suspensa como um pendulo, balançando de um lado ao outro, flutuando, no último degrau me preparo para pisar no chão, chego a sorrir, olho para a frente em direção ao chão molhado e em questão de segundos aquela mancha escura no canto do onibus corre até mim, não olhei, podia ter olhado, mas não olhei, meu sorriso tomou um tom sarcastico, enquanto caia senti a dor irradiando pelas minhas costas num grito mudo, antes de tocar o chão acordei.

Não podia me mexer, estava completamente dormente, bem, não completamente, ainda sentia minhas costas, meu rosto estava coberto de suor misturado com lágrimas, minha respiração lutava para me manter acordada, minha consciência preferia voltar a dormir, mas minha coluna não permitiria, não. Pude sentir minha pele rasgada, pude ver a carne exposta pelo canto do olho, ela não estava mais lá, havia fugido de mim, não sei com que propósito, no fim do dia ainda seremos uma só, ainda terei que suportar a dor dela rasgando minha pele e ela ainda terá meu músculo pressionando seus ossos, empurrando-a para perto de mim. Minha pele dilacerada ardia com o toque do vento, minha respiração tornara-se mais pesada, minha coluna não estava lá, então não doía, mas o incômodo permanecia, os ombros tensos, as mãos formigando, as pernas dormentes, o grande buraco nas minhas costas atraia moscas e eu ainda não podia me mexer, sem conseguir mexer o pescoço senti ela me olhar, procurei desesperadamente pelo quarto, as manchas de sangue me levaram para o canto esquerdo, em cima do armário minha maior inimiga me encarava, mesmo que não possuísse olho algum eu sentia seus olhos sobre mim, ela repousava retorcida no canto da parede, com pedaços de mim ainda presos entre os ossos, numa posição de ataque, sei que é impossível algo como aquilo emitir som algum, mas juro que a ouvi rosnar. Olhando pra ela ali não consegui sentir mais nada além de ódio, o mais puro ódio por aquele pedaço gigante de mim que definia todos os meus dias, que marcava a ferro quente na minha pele a dor que emanava pelos meus ombros, cobrindo meus olhos com esse véu de raiva, impaciência e profunda agonia, eu queria poder segurá-la, quebrá-la com minhas próprias mãos, moê-la até ser somente pó, mas não consigo me mover sem esse pedaço rídiculo de mim mesma. Não tive tempo de acalmar os ânimos entre nós, pois no menor sinal de compreensão vinda de mim, sua maior inimiga, ela se tornou infantil e decidiu me incomodar, acho que gosta que eu a odeie, como se precisasse do meu desprezo para se manter viva. Começou a se mover lentamente em minha direção, quando percebeu que eu entendi aonde ia, se tornou rápida, como um gato. Como se eu pudesse sair dali ela calculou o melhor caminho, um que me impedisse de fugir, se aproximou das minhas costas enquanto eu chorava desesperada, deitou ao meu lado e se encaixou em mim perfeitamente, eu gritava por misericórdia, para que ela se afastasse, para que me esquecesse, tentei barganhar, podíamos ser duas vivendo separadas, mas acho que ela não gostou da ideia, eu sei que é impossível algo como isso falar, mas juro que ouvi ela rir com a ideia. Quando meus movimentos e sistema nervoso voltaram, meus dedos se agarravam ao lençol da cama com força enquanto eu gritava para que ela fosse embora, a dor irradiava pelo meu corpo, meus músculos se moviam de encontro um ao outro, as pontas rasgadas se fechando, prendendo minha nêmesis dentro de mim, eu chorava e esperneava em agonia sem ar, sentia a pele esticar e se ajeitar por cima do músculo, ela se movia agitada e sem piedade alguma, procurava a posição mais confortável para repousar.

Acordei assustada, saí da cama antes mesmo de abrir os olhos, num movimento rápido como uma presa fugindo de um predador. Respirava com dificuldade, inflando o pulmão ao máximo, procurei por todos os cantos do quarto mas ela não estava lá, não costuma aparecer na luz do dia, nunca aparece quando estou acordada. Sentei na cama com dificuldade sentindo a coluna doer, os ombros tensos já tiravam minha paz, olhei para meu reflexo no espelho enquanto passava a mão no ombro puxando a pele em direção a coluna, tentava sem sucesso apaziguar a dor, por um segundo senti a ponta do osso perto do pescoço se mover, levantei novamente com o susto. Estar em pé doía, eu alternava o peso do corpo entre um pé e outro, como se a dor fosse capaz de ficar tonta e assim me largasse por um segundo para recuperar o fôlego. Olhei para a cama encharcada de sangue e suor por bastante tempo, já desisti de buscar explicações para o fenômeno. Enquanto abraçava a mim mesma senti a visão embaçar e voltar várias vezes, respirar com tamanha dor era difícil demais assim como me manter de pé, mas permaneci na mesma posição, me recusando a ceder a ela pressionando meus nervos dentro de mim, me forçando a pegar no sono para que pudesse sair novamente. Mas me recuso a deixá-la partir, estamos no mesmo barco, eu a atormento de dia, ela me atormenta de noite e quando nossa cena finalmente terminar, sei bem que mataremos uma a outra. Suspiro pesadamente e então me deito na cama limpa e bagunçada, encontro uma posição confortável e me cubro com minha manta pesada, pego no sono enquanto observo a parede branca do meu quarto agora silencioso. Preciso fazer as pazes comigo mesma.

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