Venho de uma família de agricultores, desde pequena vi minha avó mexer na terra com prazer, ela remexia o solo com afinco, com dedos mágicos benzia a terra e em apenas alguns meses as verduras frescas brotavam, nos dando graças. Eu colhia o tomate do pé, não dava tempo de lavar, seu destino era minha gula, mordia com gosto, sentia prazer na água que escorria pelos cantos da boca, nem limpava os vestígios do roubo, não me importava com a sujeira. Sempre achei os tomates a mais suculenta fruta, não muito doce, não muito salgado, as sementes não incomodam, em todos os aspectos são agradáveis. Passava horas admirada com a visão de minha avó, aquele ser tão pequeno, de pele fina, postura curvada mexendo na terra debaixo do sol por horas, cuidando para que os tomates viessem fortes e suculentos, para que eu, meus primos e irmãs pegassem do pé sem medo do que comíamos.
Hoje em dia vivo na cidade, a um tempo percebi que não tenho dedos mágicos, e mesmo que tivesse, o sol, o cimento e o odor da cidade quebram qualquer magia herdada dos antepassados. Na cidade tudo é resgate, você tenta com afinco resgatar sua história, seu lugar no mundo, sua magia, seu amor, seu significado. Não planto nada na terra, não faço frutas e verduras crescerem frondosas, mas algo cresce em mim. Sei que cresce.
Há alguns anos, ainda pequena o mundo plantou em mim uma semente, ela entrou pelo meu umbigo enquanto eu dormia, até hoje cuido pra que mais nada entre por lá, o gosto que ficou me incomoda. Com o passar dos anos isso foi criando raízes, eu sinto elas se esgueirando pelos meus órgãos, apertando meu estômago, movendo os móveis de lugar de acordo com seu desejo, eu sinto o peso da árvore se materializando bem na boca do meu estômago, fazendo meu útero ceder, ele afunda em mim, sinto que a qualquer momento vou parir esse intruso. Se bem que nem isso é, não mais, deixou de ser quando me afeiçoei a sua existência, quando percebi que a dor que causava me movia.
Sem piedade alguma as raízes se infiltram pelos meus músculos, a noite sinto elas se moverem, percorrendo meu corpo, tateando meus ossos, elas se embaralham e me agarram com mais força a cada dia, elas estão tomando posse, estão me retomando. Às vezes as solas dos meus pés coçam e ao olhar atentamente vejo os diversos pontos pretos, são as pontas das raízes, os dedos mágicos, eles procuram terra, procuram solo bom, que dê. Elas querem me levar para o mato, querem me plantar na terra, querem rasgar minha pele e me guardar no meio do tronco imenso, querem me gerar, querem que eu seja semente, como um dia elas foram sementes dentro de mim, mas eu tenho medo. Tenho medo dessa terra dura de concreto, tenho medo da pouca água e do calor incessante que vai me matando aos poucos, sem dó, tenho medo de não dar fruto nenhum.
Eu sinto as raízes apertando meus órgãos e movendo meus dedos, sinto elas massageando meu cérebro e fechando meus olhos, sinto elas me tomando pra dançar sem que eu consinta passo algum. Algo cresce em mim, não é criança, não é doença, não é o famíliar medo. Algo cresce em mim a muito anos, alimentado pela raiva, indignação, esperança e amor. No meu umbigo eu sinto a dor fina da gestação acontecendo, eu gero algo que anseia por viver.
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Cenas escritas no café
Короткий рассказTextos soltos experimentais de minha autoria.