Serpente

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Sou a mais inteligente, na ponta da língua só tenho lábia, uma fala abençoada, uma filha de Afrodite, posso não ser a mais bela, mas se ficar sozinha com você, ganho mais um coração devoto.

Ahh o meu ego,
meu ego,
meu ego,

Meu divino ego me cobre a noite quando está frio, me alimenta quando minha barriga grita de fome, ele tapa meus ouvidos quando sua voz me magoa, ele me levanta, me ajeita e me empurra, ele sou eu, eu sou dele.

Não acho errado o instinto de sobrevivência, sempre invejo o mais forte, me aproximo com cuidado, sento ao seu lado, sussurro palavras doces em seu ouvido e corto-lhe o pescoço, para enfim sentar em seu trono graciosamente enquanto repouso os pés no seu cadáver. Ninguém pode ser o mais forte pra sempre. Por isso antes de se fortalecer seja flexível, tenha olhos rápidos, pense, pense e pense, quem pensa o suficiente certamente não precisa de mãos fortes, quem pensa o suficiente pode simplesmente mandar, mesmo que tenha mãos tão fracas quanto gravetos. Observe enquanto minhas mãos fracas com pele delicada e dedos ossudos definem a vida de milhões ao escrever numa folha quase transparente com uma caneta tão leve quanto uma pluma. Meu nome se tornou sagrado, em meio aos homens sou quase uma Deusa, mas sei que sou melhor, porque estou bem aqui. Um dia alguém vai me tirar do meu trono, mas não tenho medo ou raiva, não me afasto de Judas, sua forma é interessante demais pra me entediar, pelo contrário, guio sua mão pelo meu pescoço delicado, sinto a lâmina gelada riscando minha pele e entro num delicioso frenesi, o som da minha respiração pesada toma o ambiente e eu sinto que estou afogando, sem ar, meu sangue jorra tingindo o trono outra hora verde, agora tudo está preto, o início de um novo tempo, finais dramáticos são prazerosos demais, considero impossível odiá-los. Em meu caixão descansarei com um sorriso largo, finalmente satisfeita.

Não acredito em destino, em alguém me guiando, olhando por mim, eu pulo entre as cordas no meu ritmo, do meu jeito, eu sigo os meus caminhos questionando a mim e ninguém mais, eu escrevo minha história, e se o capítulo não for como imaginei apenas jogo o papel fora e escrevo outro. Eu repito um diálogo quantas vezes eu quiser, eu mudo e volto a mesma cena várias e várias vezes, até compreendê-la por inteiro, até torná-la entediante. Eu pertenço só a mim e todos os outros parecem não merecer minha figura, estão todos tão abaixo. Sou um pêssego maduro, rosado, solitário, você não pode resistir. Sou uma maçã, a mais vermelha, a maior, a mais doce. Então sou um gato preto, olhos grandes, peludo, atento a cada movimento corro pelos telhados, roubando das casas dos ingênuos que mantêm as portas e janelas abertas. Eu mudo e mudo de novo ao meu próprio prazer, eu vivo por ele. Fico presa por horas olhando meu reflexo na água, não resisto aos meus olhos, eles tem algo, alguma coisa que me assusta e instiga na mesma intensidade, não acredito que só eu me sinta assim. Somos nossos próprios Deuses, não existe nada mais belo que a forma que tomo quando me olho no espelho, como se eu me servisse como nunca antes.

Extasiada pela visão de mim mesma eu mudo de forma de novo, agora deslizo preguiçosamente por entre os móveis, apreciando meu novo eu elegante, silencioso, brilhante e peçonhento. Você tem só duas chances para descobrir, sou um humano ou uma serpente?

Cenas escritas no caféOnde histórias criam vida. Descubra agora