Um marinheiro disse, certa vez, que o mar parecia um berço, suavemente balançando de um lado para o outro, embalando o sono e alimentando sonhos nas longas noites. Talvez fosse essa a magia que atraía os homens à água, uma forma de reviver sua infância a muito ida. Eles não costumavam temer muita coisa, principalmente nas noites tranquilas em que a brisa estava fresca e o mar leve.
Naquela noite o navio corsário português poderia ter permanecido em sua rota rumo a casa, voltando das índias, e jamais teria descoberto o perigo que rondava a solta. Infelizmente as ondas o levaram suavemente ao encontro de um navio menor, com uma bandeira negra flutuando na noite escura, a caveira pintada nela invisível na escuridão.
— Iremos intercepta-lo senhor? — perguntou o primeiro comandante ao capitão, que arqueou as sobrancelhas, abaixando sua luneta e cofiando a barba.
— Não nos faria mal, faria? — perguntou-se o capitão que embora agora servisse ao rei, um dia já tinha sido uma praga dos mares. Ele avaliou o tamanho menor da embarcação à frente e especulou sobre os tesouros que poderia encontrar. Já estava há muito tempo navegando, de modo que qualquer comida diferente seria um elixir dos deuses. Também não lhes faria mal roupas novas e se encontrassem dinheiro melhor ainda. A decisão estava tomada.
O sino de alerta acordou a tripulação e em pouco tempo estavam emparelhados com sua futura vítima. Os corsários empolgados, dependurados na amurada do navio, prontos para atacar, sonhavam com as maravilhas e a diversão de finalmente terem prisioneiros de novo e um butim para desfrutar. Fazia tanto, tanto tempo que o capitão decidira tornar-se corsário, deixando de lado a pirataria...
Mas sua alegria não durou muito. Logo um silêncio lúgubre começou a percorrer as fileiras conforme o interior do navio menor ficava nítido. Seu nome era "Netuno" e parecia não haver viva alma nele. Para a irritação do comandante, vários de seus corsários se benzeram e um coro de orações flutuou baixinho com a brisa.
— Do que estão com medo, seus cães? — bradou o capitão, cada vez mais incomodado pela ausência de tripulação e mais irritado ainda pelo arrepio agourento que o percorria. O Netuno parecia um navio fantasma iluminado pela lua, oscilando suavemente no mar calmo. — Vamos lá, o que estão esperando? Invadir o navio! — ele berrou mais alto erguendo a espada.
Nenhum marujo se moveu.
Da cabine do Netuno então, uma figura esguia saiu para a noite. Era um homem jovem, com barba negra cerrada e cabelos igualmente escuros caindo-lhe pelos ombros até abaixo do peito. A camisa branca aberta até a metade do tronco deixava parcialmente visível linhas de uma tatuagem em forma de mãos, como se uma figura sombria o abraçasse por trás, segurando-o firme.
— Boa noite, cavalheiros! — saudou o homem parando na amurada, onde descansou um pé calçado em uma lustrosa bota negra. O homem apoiou os braços no joelho e sorriu cordialmente para seus atacantes, como se não estivessem no meio da noite, em plena invasão. — Posso lhes oferecer alguma coisa? Um chá de repente? — ele arqueou as sobrancelhas, simpático e cordial. Sua voz era melodiosa e, embora os homens jamais fossem admitir, maravilhosa. Ela lhes dava uma súbita vontade de se jogar dentro do navio, caindo aos seus pés.
— Santo Deus, é o Devorador, capitão! — sussurrou um dos corsários ao perceber o impulso que quase o fez cair da amurada do navio. — É um demônio! Afastem-se homens! — ele começou a empurrar os companheiros para longe, mas nenhum deles parecia muito inclinado a se afastar. Estavam encantados pela beleza e pela voz do estranho, ainda sem se dar conta de que sequer gostavam de homem daquele jeito.
— Não fale bobagens, marujo... — retrucou o capitão guardando a espada e se esquecendo do motivo que o fez abordar aquele estranho. Estava considerando seriamente aceitar uma xícara de chá.
— Não o deixe começar a cantar! — implorou o marujo, agarrando-se às lapelas do capitão, que o empurrou para longe. — Ele vai afogar todos vocês e devorar suas almas. Então vai lançar seus ossos aos peixes!
— Ora, mas quanta imaginação. — riu o suposto demônio. A risada era tão encantadora quanto a voz. Havia um toque de magia nela, como uma droga, que causava reações estranhas em quem a ouvia, fosse homem ou mulher — Eu não jogo os ossos aos peixes. Eu os coleciono!
O marujo gritou, tampando os ouvidos. Nenhum de seus companheiros parecia estar mais prestando atenção, estavam todos sonhadoramente encarando o demônio, bebendo suas palavras como quem ouve a voz dos anjos em um oásis doce depois de morrer de sede em um deserto salgado.
Oh eles estavam tão enganados!
— Como é seu nome, marujo? — perguntou o demônio.
— Não vou dizer, não vou dizer... — cantarolou o corsário como se assim pudesse evitar que a voz encantada penetrasse seus ouvidos.
— Está bem. — Deu de ombros o demônio do mar, virando-se para o capitão — Qual o nome dele?
— Tomás. — Respondeu prontamente o capitão. O demônio sorriu para Tomás, arqueando as sobrancelhas como quem diz "viu só? Eu consegui e nem foi tão difícil".
— Tomás. É um ótimo nome! E o que vocês estão buscando nestas águas, capitão?
— Estamos levando especiarias para o rei.
— Especiarias, mas que coisa maravilhosa! Acho que eu adoraria dividir essa carga. O que me diz?
O capitão franziu o cenho, parcialmente ciente de que havia algo muito errado naquela pergunta, mas incapaz de desanuviar a mente envolvida pela voz maravilhosa. Ele acabou assentindo mesmo sob os protestos alucinados de Tomás.
— Shh — sibilou o demônio para Tomás, quando este começou a falar mais alto, chacoalhando seus companheiros, tentando alertá-los que estavam prestes a ser roubados. Ou mortos. Ou os dois! — Você é muito afobado, Tomás, meu garoto. E muito resistente à minha voz — comentou em tom mais sombrio, estreitando os olhos. — Eu vou contar uma linda história sobre as Índias e seus tesouros, e enquanto a ouvem podem ir trazendo as especiarias para mim. Creio ser um bom preço para uma canção.
— Uma canção... — balbuciou Tomás, apavorado. — Por favor, não cante...
Mas o demônio já tinha começado e era o som mais belo que aqueles homens já tinham escutado. Tomás chorou, mas em determinado ponto esqueceu-se do motivo e lhe pareceu uma ótima ideia descarregar as especiarias naquele navio tão amigável e bonito.
O demônio cantava sobre lugares paradisíacos, praias com lindas sereias e mulheres maravilhosas. Ele cantou e cantou e nenhum marujo resistiu a ela.

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O Devorado
RomanceE se a pequena sereia se apaixonasse pelo príncipe errado? O herdeiro do trono da Dinamarca está em busca de um elixir miraculoso que resolveria todos os problemas de um homem. Serena, sua companheira de viagem, é a sereia que um dia o salvou de um...