Capítulo 10 - Esqueletos no armário

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Bem, por isso ele não estava esperando.

A ratinha desmoronou no instante em que ele a soltou no corredor, na curva do quarto do príncipe. A jovem parecia uma boneca de trapos ajoelhada no tapete com as mãos cobrindo o rosto enquanto as lágrimas corriam soltas. Aksel pensou que podia até mesmo ver a trilha que elas formavam no queixo dela, acumulando-se como pequenas contas de prata iluminadas pelo luar que entrava pelas janelas.

Suspirando, sentindo-se incapaz de ver uma jovem chorando, Aksel guardou a adaga no cinto e abaixou-se até que estivessem na mesma altura. Com gentileza estendeu um lenço e limpou as lágrimas que escapavam por entre as mãos em concha de Serena. Surpresa, ela as afastou do rosto e recuou, encarando-o com aqueles enormes olhos claros.

— O que deu em você, ratinha? — ele perguntou com um sussurro, abaixando o braço que segurava o lenço.

Eu não queria fazer mal a ele. Não queria fazer mal a ninguém.

Ela gesticulou com mãos trêmulas. Aksel arqueou uma sobrancelha, tocando na adaga que ele mal tivera tempo de recuperar antes de tirá-la do quarto do príncipe. Ainda não sabia ao certo porque fizera aquilo. Com certeza as desavenças amorosas do príncipe não eram de sua conta, mas... Ele sacudiu a cabeça, resignado. Fosse pela beleza dela ou pela estúpida simpatia que sentia pelo príncipe, não conseguiria simplesmente virar as costas depois de vê-la armada aos pés da cama de Erik e partir como se nada tivesse acontecido.

Primeiro ele tinha sido movido pela curiosidade, desde o instante em que a ouvira deslizar pelo quarto. Bobinha, ainda não tinha aprendido que ele raramente dormia? Era uma das marcas que ser devorado deixara nele. Mesmo que não tivesse mais o impulso de se jogar no mar em busca dos braços de sua sereia, ainda assim ouvia a voz dela cantando todas as vezes que fechava os olhos. Às vezes conseguia dormir e até sonhava, geralmente revivendo o único e fatídico encontro que tiveram, mas na maior parte do tempo ele só ficava lá, fingindo dormir enquanto tentava se concentrar na voz dela.

Então ele havia seguido a ratinha com curiosidade e depois com alarme. Agora a única coisa em que conseguia pensar era na sorte dela ser muda, caso contrário já teria acordado todos os guardas com seu choro compulsivo.

— É bastante difícil acreditar nisso quando você estava armada, mirando o príncipe, sabe? — ele entortou a cabeça e ela voltou a esconder o rosto entre as mãos. Os ombros chacoalhando intensamente. Aksel revirou os olhos. — Ora, pare com isso. Estamos tendo uma conversa adulta aqui. Quero entender o que está acontecendo.

Toda informação era útil e se ele tinha alguém disposto a ser inimiga da Dinamarca, certamente essa informação era valiosa. Mas, claro que ele não era ingênuo o suficiente para não deduzir o que tinha acontecido ali, afinal tinha visto mais cedo as carruagens de fora que chegaram ao castelo. Os criados não falavam de outra coisa e, enquanto voltava para seu quarto depois de ser abandonado pelo príncipe no meio da excursão pela galeria, não pode deixar de ouvi-los falando sobre a jovem noiva que a rainha arrumara para o filho. Pareciam todos muito animados com a notícia.

— Deixe-me adivinhar: você conheceu a noiva dele. A garota do templo, ou algo assim. — ele tentou se lembrar de como os criados se referiam a ela, mas as palavras lhe faltaram. A resposta de Serena foi de pura revolta. Os gestos dela foram tão acelerados que ele mal conseguia traduzi-los.

Ela não o salvou! Eu o salvei! Ele está enganado! Quando o navio afundou dez anos atrás, eu estava lá. Eu o levei para as escadas do templo, mas Erik esqueceu. Ele acha que acordou na praia...

— Você o salvou? — a expressão de Aksel lentamente foi mudando de escárnio para interesse e então para algo mais sério. Serena continuava gesticulando e chorando, mas ele a interrompeu, segurado seus pulsos. — Deixe-me te mostrar um lugar que encontrei hoje mais cedo, enquanto procurava o caminho de volta para meu quarto. — ele deu uma piscadinha para ela, mas Serena sentiu a tensão dele. Até mesmo seu sorriso estava mais duro agora. — Pode ser que tenha algumas respostas para você.

Ela o seguiu como um autômato através dos corredores escuros, apenas a luz do luar entrando pelas janelas iluminava seu caminho. Ainda assim ele andava com a segurança de um conquistador. Mesmo quando entraram em um corredor escuro e estreito, sem janelas, que levava direto para um antigo porão, o pirata hesitou. Serena se perguntou quanto tempo ele tivera para explorar o castelo na ausência de Erik e não gostou da perspectiva.

Aksel abriu a velha porta de madeira, cuja tranca parecia frágil, guiando-os para o interior da sala que cheirava a mofo. Seus pés bateram em amontoados de objetos, caixas e baús. Serena bateu a cabeça em uma prateleira, incapaz de se comunicar através de gestos na escuridão do lugar.

Uma luz bruxuleante surgiu à sua esquerda quando Aksel acendeu uma vela, que apoiou sobre uma estante empoeirada. A luz bruxuleante iluminou diversas silhuetas de objetos antigos cobertos por lençóis.

O que estamos fazendo em um depósito?

— Você já vai descobrir. — Respondeu o pirata, esgueirando-se entre dois móveis carcomidos pelo tempo. Ali naquele vão repousavam vários quadros enrolados em linho e couro. Serena espiou as imagens por sobre o ombro dele. Um navio em meio a um mar tempestuoso, um garanhão imponente empinando e então... O rosto belo e sério de seu príncipe.

Aksel deu um passo para trás, puxando a pintura consigo.

— Este é seu príncipe?

Serena não respondeu, mas tampouco precisava. Sua expressão falava por si. Ela esticou uma mão para tocar a face do Erik que ela havia conhecido dez anos atrás, o jovem impetuoso, de sorriso contido e olhos azuis estreitos. O uniforme azul com a faixa vermelha e ombreiras douradas realçava o contraste do cabelo negro e da pele de porcelana. Seu príncipe.

— Este não é ele. — disse o capitão quando a ponta dos dedos dela tinha tocado a curva do rosto do jovem na pintura. Serena virou o rosto surpresa, olhando-o ressabiada. — Não é o seu Erik. É o outro. O irmão mais velho dele. Príncipe Soren.

Serena piscou atônita. Erik tinha um irmão? Ela nunca o salvara então?

O capitão a encarava de uma forma estranha, um tanto pensativa. Serena não conseguiu pensar em nada para dizer a ele.

— No dia do naufrágio, Erik era uma criança. Você salvou uma criança? — ele perguntou, olhando-a atentamente. Serena balançou a cabeça em negativa. — Então salvou o outro, o príncipe que estava comemorando 18 anos naquele navio. Você parece ter confundido os dois, apesar de ser bastante difícil confundir uma criança com um homem jovem.

Serena tentou pensar rápido em uma explicação, mas nada lhe ocorreu. O pirata ficou em silencio, como se dando a ela a chance de dizer algo. Ela continuou em silêncio e ele finalmente pigarreou.

— Se você é a salvadora misteriosa de Soren, então só resta uma pergunta a fazer... — Ela finalmente desviou o olhar da pintura, encarando a figura taciturna do pirata, recostado contra uma mesa parcialmente encoberta por um lençol amarelado. O capitão estava com os braços cruzados na frente do corpo e uma expressão muito séria. A voz sem nenhuma gota de sedução. Serena esperou que ele completasse a pergunta. — Como você conseguiu pernas?

Ela pensou a princípio que não estava ouvindo direito, mas ele repetiu a pergunta para incentivá-la.

— Todo mundo sabe que Soren foi salvo por uma sereia. Você não?

Deve ser só uma história.

Serena sentiu o sangue se esvair de seu rosto com o sorriso de escárnio que o pirata lhe lançou.

— Ninguém te contou? Quando Soren foi salvo pela sereia ela o devorou. Acredito que ele seja completamente maluco a esta altura. É por isso que o quadro dele está escondido aqui. Querem que ele seja o esqueleto no armário, o segredo embaraçoso da família, o algo de podre no reino da Dinamarca.

Serena se lembrou da inocente canção que cantarolara no ouvido do príncipe, acreditando ingenuamente que não faria mal. O que o pirata estava contando não podia ser verdade, podia? Medo apertava suas costelas e a paralisava no lugar de tal forma que ela sequer conseguia mover as mãos para fazer uma pergunta coerente.

O capitão a olhava como um peixe precioso em uma rede.

— Você é ela, não?

Finalmente ela conseguiu tomar impulso para se afastar dele e da pintura, correndo para fora do quarto sentindo o pânico envolve-la. Ela queria correr para os braços de Erik, mas o que diria a ele? Queria sumir, voltar para casa e esquecer que um dia viera para este lugar. Ou que encontrara o capitão.

Ela queria esquecer tudo.

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