14 | O Diabinho

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Observar Shinsou chorando enquanto analisa um retrato que distorce — e apaga — parte de sua aparência me fez, mesmo que por alguns segundos, voltar para a minha própria realidade. A realidade que dói.

Completamente alarmado, eu me afasto com velocidade do quadro, dando as costas e apoiando minhas mãos na minha mesa repleta de manchas de tinta. Sinto como se meus pulmões estivessem tentando se fechar; a minha mente gira. Eu me sinto tonto.

Eu preciso sair daqui.

— Por que… os olhos estão… manchados? — Sua pergunta saiu em um fiapo de voz, como se não estivesse conseguindo falar direito. 

O encaro de soslaio, virando minha cabeça minimamente. Ele continua parado, olhando para o quadro e chorando com os olhos arregalados, como se aquilo fosse a coisa mais assustadora que vira em toda a sua vida. E talvez fosse. Afinal, não é todo dia que alguém faz um retrato seu em meio a um surto, o distorcendo para ficar em prol a sua realidade inexistente e, ainda por cima, mancha seus olhos com tinta preta porque não se lembrava deles.

Melhor: não queria se lembrar deles. 

Recupero um pouco o controle do meu corpo, puxando meu maço e pegando outro cigarro, já que o anterior parou no chão e foi pisoteado sem eu nem ao menos perceber. O acendo com meu isqueiro de raio e dou uma tragada profunda, demorando mais tempo que o necessário. O silêncio era alto demais, e eu me sentia estupidamente pequeno e vulnerável naquele momento. 

Eu sou estupidamente vulnerável.

— Não queria me lembrar deles. — Decido ser sincero em minha resposta. Escuto-o puxar o ar com força lentamente, como um susto que demorou tempo demais para se concretizar; ou como alguém que faz força para não se mostrar ainda mais magoado. — Ou eu já não me lembrava mais deles. Eu não sei. Tanto faz.

— O que sentiu quando viu meus olhos novamente? — Finalmente virou-se para mim, e eu acabei engolindo em seco.

Tentei fazer de tudo para não reparar em seus olhos, mas minha visão foi automaticamente atraída para eles. O púrpura natural e que sempre me chamou a atenção parecia apagado; tudo o que ele refletia era a mais profunda tristeza e dor que o ser vivo é capaz de sentir. Quase como se estivesse perdendo alguém. Como se estivesse perdendo alguém para ele mesmo. O vermelho que o cercava, acentuando a angústia; as lágrimas que escorriam em abundância, deslizando pelo seu rosto pálido e contornando os lábios que tremiam para não cederem àquele sentimento… tudo isso… daria um belíssimo quadro…

Desvio o olhar para o chão, dando uma tragada em meu cigarro e o deixando pendurado em meus dedos. Tudo isso parece tão mais melancólico do que realmente deveria ser…

— Eu senti vontade de fugir. Fugir para o mais longe que eu pudesse. — Digo mais baixo do que gostaria, mas alto o suficiente para ele. — E de vomitar. E eu vomitei. Vomitei sentindo que estava expulsando do meu corpo tudo o que me perseguiu durante todo esse tempo. Mas no final, eu não expulsei nada. 

— Por isso que você sai da realidade com… esses vícios… — Entendo sua insinuação, mas eu não digo nada. Shinsou suspira alto, como se tentasse dar um fim ao como seu corpo estava respondendo tudo aquilo. — Você não consegue se livrar dos seus traumas. Da culpa. Assim como eu. 

— Não nos compare, por favor. — Acabo soando desesperado demais, e isso não passa despercebido. 

Shinsou passa os dedos pintados de preto abaixo dos próprios olhos, como se tentasse espantar as lágrimas. Então ele virou-se completamente para mim, parecendo destruído, de alguma forma.

Purplish Vampire IIOnde histórias criam vida. Descubra agora