Capítulo 6

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Folga significava algumas coisas na linguagem comum dos soldados: jogatinas, uísque e mulheres.

Como Mika era um soldado muito aplicado e obstinado que nada mais enxergava a não ser sua própria superação, não costumava aproveitar a folga daquela maneira. O mais normal seria passar seus dias aprimorando seus treinamentos para quando se apresentasse novamente estivesse ainda melhor do que antes. E ele tinha ainda a preocupação do seu dom, que apesar de seus esforços quase desesperados não queria saber de se desenvolver. E Mika tinha tentado literalmente de tudo – simpatias, feitiços, orações, colocou-se em situações de profundo stress, testou todos os seus limites, elevou suas habilidades em outro patamar, e mesmo assim, nada do dom aparecer. A cada dia que passava ele ficava mais preocupado. Não aguentava mais ouvir os sacerdotes dizerem para ele se acalmar, que a vontade dos deuses era mais forte que a sua própria e ele devia aceitar e ter paciência para esperar o tempo deles. Ou ouvir a irmã tranquiliza-lo com aquela conversa vazia de que era só uma questão de tempo. Mika tinha pressa, tinha urgência – em alguns dias começaria sua vida no Esquadrão pra valer e precisaria de seu dom plenamente desenvolvido para ter a performance que esperava.

Naquela noite, contrariando sua rotina, foi convencido por Reiner a beber alguma coisa com os outros rapazes recrutas. Reiner tinha família no bairro militar, mulher e filhos, mas segundo ele já estava cansado de ficar em casa ouvindo as reclamações da mulher e o choro dos filhos. Os outros recrutas eram rapazes pouco mais velhos que eles, que não tinham família ou que vieram de outras cidades para fazer parte do Esquadrão mais importante do exercito.

O Esquadrão de Elite era tão antigo quanto o próprio exercito e inicialmente era composto totalmente por dotados. Após as disputas territoriais ele passou a receber também soldados comuns desde que estes tivessem desempenho e habilidades compatíveis com o grau de dificuldade das missões do esquadrão, e hoje era a principal tropa de reconhecimento e ataque que a Nova Republica dispunha. Criaturas, rebeldes, todos os principais inimigos da Republica estavam na mira do esquadrão e diziam as mas línguas que o capitão Erwin era tão ou mais importante que o marechal do exercito.

Passaram algum tempo numa conversa amigável de recrutas, reclamando de seu treinamento pesado, de alguns colegas metidos e principalmente de seus tenentes. Com exceção de Makali, todos os outros eram uns porcos miseráveis, diziam eles, e eles não entendiam como seus subordinados podiam idolatra-los tanto a ponto de levar o juramento do esquadrão tão ao pé da letra. Depois, quando a bebida já falava mais alto que tudo, passaram para assuntos mais pessoais. Reiner em dado momento, com a face rosada e entre soluços, colocou a mão no ombro de Mika e confidenciou como se fossem amigos de infância:

- A minha mulher...eu não a suporto. Não consigo mais nem olhar para a cara dela. Não que ela tenha me feito alguma coisa...mas um homem, ele precisa variar o cardápio de vez em quando. E quais as chances que eu tenho de fazer isso realizando trabalho interno na policia, preso nesta muralha infernal? Eu me sinto um pássaro no gaiola. Me sinto como se estivesse enjaulado numa prisão de fumaça e fuligem e não conseguisse respirar. Eu preciso ver o mundo, Mika. Mesmo que ele não seja uma coisa boa de ser vista. Compreendo todos os perigos que sair representa,as criaturas, os malditos Bastardos e todas as coisas horríveis que teremos que enfrentar lá fora...talvez eu saia somente para encontrar minha morte na primeira esquina...mas se for isso, eu vou partir feliz, em paz. Simplesmente não posso mais passar um dia trancafiado nessa jaula. Não posso.

Mika compreendia o que ele queria dizer, por muitas vezes se sentia assim.

- O mundo é grande demais – ele completou

- Sim, e com muita coisa para ser vista e vivida! – alegrou-se Reiner por ser compreendido – Dizem que existe muitas outras centenas de cidades em ruinas esperando para serem reconquistadas. Que existe um mar tão grande que a extensão dele é maior que dez vezes nosso território. Que existem florestas virgens imensas que escondem todo o tipo de segredo e traços de nossos ancestrais em todos os lugares. Se eu conseguisse ver só 1/3 de todas essas coisas, eu ficaria feliz.

- O homem não foi feito para viver enjaulado.

- Certamente que não! – Reiner abraçou-o, feliz, e soltou um sonoro arroto – Me diga Mika. Vc já possuiu uma mulher?

Mika ruborizou. Os outros soldados das tropas de vigilância viviam tirando sarro dele nas rondas na muralha por causa disso, acusando-o de sempre estar ocupado demais se punhetando ao invés de enfiar o pau em outra pessoa.

- Vamos resolver seu problema imediatamente – Reiner apontou um grupo de soldados femininos, aparentemente tão bêbadas quanto eles dois – me diga de qual gosta mais.

- Acho que não vai ser assim tão fácil, amigão.

- Claro que vai! Vc é um Wacoski! Descendente dos grandes elementais, dos grandes nomes! Só de ouvir seu nome elas vão ficar louquinhas por vc.

Mika nunca havia pensado em usar de seu nome daquela forma. Para provar seu ponto Reiner arrastou-o para o grupo, bradando que ele, seu grande amigo, era o grande Mika Wacoski, um dotado por direito sanguíneo, e que ele finalizara seu treinamento no esquadrão de elite e estava pronto para iniciar uma carreira de feitos incríveis e memoráveis. Mika nunca achou que aquela conversa fosse pegar, mas pegou, e logo uma ruivinha muito sardenta começou a se engraçar pra cima dele tão oferecida que só faltava arrancar sua calcinha ali mesmo. Tudo estava indo muito bem até a garota ter a infeliz ideia de perguntar o que não devia perguntar:

- Vc pode fazer uma demonstração do seu dom para nós?

Mika engasgou e com a voz embargada tentou sair dessa com classe:

- É muito perigoso, nesse estado em que estou.

- Ah qual é, só uma demonstraçãozinha de nada!

- Prefiro não fazer isto embriagado.

- Por que não? Ou será que vc não sabe fazer nada?

Mika cerrou o punho, o cenho e o espirito, e afastou-se revoltado da rodinha, bufando de ódio e saiu para a noite escura. Logo foi alcançado por Reiner, que inconformado, vinha cambaleando atrás dele com um jarro de chopp na mão:

- O que deu em vc? Ela estava na sua!

- Não estou afim de nada, Reiner. Vou pra casa.

- Vai ficar todo nervosinho porque não consegue fazer nada mesmo? Ela não falou nenhuma mentira ali.

Num reflexo Mika empurrou-o, Reiner, cabeça quente que era, tentou acertar-lhe um soco, mas a bebedeira o fez errar o alvo e Mika pode revidar com um soco bem acertado nos seus dentes. Um grupo surgiu não se sabe de onde e afastou os dois baderneiros. Brigas de bêbados eram comuns, mas se fizessem muito barulho, podiam acabar enquadrados pela policia, o que poderia resultar numa pena disciplinar.

Mika desvencilhou-se dos cem braços que o seguravam e foi andando torto para casa. O ar frio e a lua bem cheia no ceu curou um pouco de sua bebedeira e quando ele se viu sozinho naquele casebre mal acabado de dois andares que caiu em si e viu que papel ridículo havia feito. Procuraria Reiner, e pediria desculpas por ter sido um imbecil, mas quem viria lhe pedir desculpas por faze-lo passar por tal provação injusta? Mika era um Wacoski e era seu dom que o definia. Sem ele, ele era incompleto. Ergueu os olhos para o pequeno altar dedicados ao pai e a mãe, que morreram na Grande Revolta defendendo eles, sua família, e seus ideais, e perguntou-se as lagrimas porque eles não permitiam que ele se tornasse um homem completo.

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