Capítulo 3

5 0 0
                                    

Haviam três níveis de muralhas dentro da cidade. A muralha Maria, a muralha Rose e a muralha Shido.A muralha Maria tinha 50 metros de altura e, seu território, 6 quilômetros de extensão, cercando toda a cidade que ficava encravada numa encosta muito alta e íngreme. Dentro de seus limites ficavam o bairro militar e o distrito industrial e era a parte mais feia da cidade, já que continha grandes construções como as fábricas de manufatura e os quartéis e centros de treinamento e quase nenhuma área verde. As ruas eram cinzentas em qualquer época do ano, sujas e mal pavimentadas. Todo o investimento que o governo aplicava naquela área era para modernizar uma fábrica ou reformar os centros de treinamento, nunca eram aplicados para melhorar a qualidade de vida ou embelezar seus pavimentos. Ninguém ali se importava com isso, na verdade. Trabalhadores das fábricas ou soldados, estes estavam condenados a uma existência servil, os primeiros por necessidade e, os segundos, por própria escolha. A falta de beleza de suas moradias e ruas não era algo pelo qual eles se incomodavam muito. Estimava-se que cerca de cem mil pessoas habitavam aquelas ruas e muros acinzentados.Dificilmente um morador da muralha Maria mudava-se para as muralhas de cima, mas o contrário poderia ser verdadeiro, como foi o caso de Erwin, que mudara-se para o bairro militar para alistar-se. Num geral os habitantes da muralha Maria quase nunca deixavam seus limites, a não ser para realizar entregas e acompanhar comboios. Algumas crianças nunca haviam visto o que havia além dos limites dos bairros, e nem imaginavam como a própria cidade em que moravam podia ser bela.Um nível acima, seguindo por uma íngreme estrada de pedra pela encosta ficava a Muralha Rose e os bairros dos agricultores, dos artistas e dos estudiosos. Ali ficavam também as Escolas, o Hospital, o Anfiteatro e as grandes fazendas de cultivo. Graças ao grande lençol freático em que a cidade fora construída em cima e a terra fértil, muita coisa podia ser cultivada em suas vastas extensões: milho, trigo, arroz e pomares diversos. Grandes rebanhos garantiam a subsistência da cidade e os fazendeiros eram tão poderosos nas decisões políticas quanto os próprios governantes. O território da muralha Rose possuía 70 km2 de extensão, mas abrigava um terço dos habitantes da muralha Maria, sendo mais da metade de sua extensão de campos arados e pastos. Suas ruas eram de pedras brancas bem pavimentadas, possuía praças e jardins agradabilíssimos e era tão diferente dos bairros militar e industrial que até se parecia com outro país.E do alto tudo vigiava a muralha Shido e a sede do governo da Nova República. Em 40 km de extensão e com mil habitantes (todos trabalhadores ou familiares da sede do governo) Shido detinha o controle das cinco Novas Cidades que foram retomadas desde que as primeiras famílias se instalaram naquela região. Estas cinco cidades ficavam num raio de até 500 km da sede e foram colonizadas especialmente por famílias do bairro dos agricultores, industriais e militares. Pode-se dizer que o excedente da população das muralhas eram "convidados" a habitar aquelas cidades, medida necessária para que a escassez de alimentos não ameaçasse o progresso. Em contrapartida, manter as cidades exigia uma distribuição de recursos (tanto humanos quanto naturais) que antes concentrava-se somente na capital, por isso a expansão das retomadas era mais importante do que nunca. Combustível, eletricidade e espaço eram bens tão valiosos que poderiam servir até como moeda de troca, se existissem nações disponíveis a trocá-los.Com a conquista e abertura das novas cidades militares, trabalhadores e industriais mudaram-se para garantir sua segurança e desenvolvimento. Durante a Grande Revolta Popular centenas de famílias foram dizimadas devido ao grande conflito que a condição dos dotados trouxeram para a população, e entregar o controle das cidades as famílias de dotados que restaram foi a maneira (inteligente) que o governo encontrou de mantê-los afáveis e a seu serviço. Nem tudo correu tão bem assim (os Bastardos estavam lá para lembrá-los disso), mas num geral esta distribuição se mostrou eficaz em manter os ânimos calmos e a sede de poder das famílias satisfeitas.Não se sabia o número certo de famílias dotadas que já houvera outrora, principalmente com a miscigenação, mas as originais foram cinco, assim como os cinco elementos, por isso eram chamadas também de Famílias Elementais. Os antigos sacerdotes acreditavam que o poder, ou dom, cedido às famílias e seus descendentes eram dádivas divinas e eles, os dotados, eram mensageiros dos deuses na Terra e deveriam ser adorados como tal. Isto pode ter sido um dos combustíveis que fomentaram a Grande Revolta, a ambição desenfreada de algumas famílias e todos os acontecimentos terríveis que seguiram daí, mas nem toda a morte e o sangue foi suficiente para destruir a religião e muitos ainda acreditavam nos deuses e nos seus representantes terrenos. Era comum inclusive encontrar, nos grandes casarões dos remanescentes destas famílias elementais, altares e estátuas dedicados aos seus deuses guardiões, herdados de gerações muito antigas, dos tempos em que a Terra ainda era um lugar habitado só por seres humanos e seres comuns da natureza.Tsuhara, protegida pelo deus do vento Fujin.Bongan, protegida pelo deus do trovão Raijin.Rivaille, protegida pela deusa do sol Amaterasu.Noyer, protegida pelo deus da água Suijin.Kebeha, protegida pelo deus da terra Izanagi.Anos de conflitos entre as famílias e a própria Grande Revolta foram responsáveis por dizimá-las pouco a pouco ao longo dos anos, por outro lado, a miscigenação entre os dotados e pessoas comuns deram origens a uma nova leva de dotados, com diferentes dons mas regidos pelos mesmos deuses protetores. Atualmente dotados não eram mais vistos de forma tão negativa e neles o governo apostava a sua vitória e possibilidade de expansão, portanto estimulava-se a união destes entre eles para fins de perpetuação e proliferação de dotados, principalmente porque havia a possibilidade do surgimento de novos dons conforme eles se cruzavam.Os Wacoski tiveram suas origens entre os Tsuharas e destes eram parentes distantes. O seu dom era tão raro e especial que os cientistas não cansavam de estudá-los sempre que tinham oportunidade e os sacerdotes não deixavam de reverenciá-los juntamente com os nomes das outras famílias provenientes das cinco elementais. O dom lhes conferia certa fama e status, mas na prática, não mudava em nada suas condições e certamente seu destino. Quisessem ou não quisessem, o lugar dos dotados era no exército, seja da capital ou de alguma das cinco cidades conquistadas, e eles nunca teriam acesso fácil aos belos jardins de Rose ou aos jantares e festas exclusivíssimos de Shido. Há quem diga que a origem do bairro militar e industrial foi uma segregação de dotados que ocorreu na cidade a umas boas dezenas de anos e que de sua origem pobre e marginalizada estes nunca poderiam fugir. No fundo, eram tão escravos e desafortunados quanto os operários que se viam obrigados a trabalhar suas vidas inteiras no chão das fábricas durante muitas gerações.Inserido neste contexto estavam os irmãos Wacoski e moldados por ele estavam suas ambições. Mika queria se tornar uma espécie de super herói do exército apenas por diversão e por que se sentia capaz disso. Nunca chegou a pensar no quanto os dotados eram negligenciados, apesar do governo obviamente precisar muito deles, nem no quão longe poderiam chegar se decidissem usar seus poderes para benefício próprio. Sequer ficava se questionando sobre os acontecimentos passados que ouvia falar – a guerra entre as famílias, a segregação ou a Grande Revolta que resultou na expulsão de uns e na morte de outros tantos – só o que ele pensava era que era uma máquina de matar criaturas e certamente estava destinado a grandes feitos na arte militar. Annie era mais introspectiva, e por isso, tinha reflexões mais profundas. Durante os anos de escola aprendeu tudo que pode da história de seus ancestrais e sempre divagou sobre o quão benéfico eram os dons que receberam dos deuses, ou seja lá de quem for. Por causa desses dons coisas maravilhosas aconteceram – como a permanência da humanidade por si só – mas guerras foram travadas e mortes terríveis ocorreram. Um povo que deveria ser unido se separou a ponto de criar inimigos em seu próprio território e nem o inimigo comum – as criaturas – era capaz de uni-los. Portanto utilizava seu dom com receio, e não de forma exibicionista como muitos faziam, como seu irmão faria certamente, pois não tinha muita certeza se ele era um dom ou uma maldição.Annie era soldado apenas por osmose, porque era o que podia ser com os talentos que tinha. Podia ser muito dura, mas no fundo, era tão romântica e tola quanto qualquer garotinha da muralha Rose, cercada por suas flores perfumadas e por seus admiradores secretos. Annie invejava essas meninas sem conhecê-las, invejava estas tardes de amores e poemas sem nunca nem ter estado lá. Só restava imaginar, de acordo com o que se recordava da escola que frequentou na infância, os livros meio apagados que lia, os suspiros que dava a noite cada vez que se lembrava da velha profecia...

Deuses e HomensOnde histórias criam vida. Descubra agora