Capítulo 14

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Antes de partirem, o grupo parou no septo, como era de seu costume sempre antes de uma missão importante, para serem abençoados pelos sacerdotes e pedirem proteção aos deuses. Não que da última vez isso tenha funcionado muito (foram três baixas num único ataque), mas os hábitos e a crença de um homem não se extingue com facilidade, e seria preciso muitas outras tragédias como aquela para um dotado perder o hábito de pedir aos seus deuses por suas causas. A população em geral era devota, mas não tanto quanto os próprios protegidos dos deuses tinham que ser. Por isso a cada vez que um grupo do esquadrão partia para uma missão, era feita uma rápida celebração no septo, o time todo era abençoado, muitas orações eram realizadas, velas e incensos queimavam e uma pequena oferenda (geralmente em moedas) era feita.

Os quatro dotados do grupo se prostraram de joelhos diante do altar que tinha os cinco deuses representados em grandes esculturas de madeira e metal. Amaterasu, Fuijin, Suijin, Kaijin e Izanagi. Daí foram uns vinte minutos de orações e cânticos entoados pelos sacerdotes, às vezes juntos, às vezes separados, com seus incensários balançando de um lado pro outro em finas correntes. Depois cada dotado fez sua oração particular diante de seu deus e despejaram em seu altar algumas poucas moedas de oferenda. A oferenda era pros deuses, mas todos sabiam que o dinheiro era utilizado para manutenção do septo, mas se indagados se então não seria mais correto chamar aquelas oferendas de doações, os dotados se ofendiam e diziam que um deus que não é reverenciado com oferendas e sacrifícios se sente negligenciado e abandona seu protegido a própria sorte.

A força da fé ia se perdendo conforme a miscigenação ocorria entre as famílias. Certamente a fé dos Tsuharas originais era muito mais forte do que de suas derivações, e Annie e Mika, por exemplo, muito pouco frequentaram o septo na vida até então, exceto vez ou outra, no pequeno e cinzento septo que tinha ali no bairro militar. Imaginavam que nos tempos das grandes famílias as hordas deviam se reunir no Grande Septo para grandes realizações religiosas, o que justificava a grandiosidade daquela construção. O pé direito muito alto, com um teto abobadado sustentado por grossas colunas de cimento e argila, várias imagens pintadas a mão que retratavam as divindades além das estátuas formando um grande e belo altar para as orações e oferendas. Ao menos os sacrifícios de sangue quase não eram mais feitos. Imaginar animais sendo sacrificados e o sangue escorrendo pelas bacias era de uma barbárie e um primitivismo enormes.

Depois dos serviços religiosos, o grupo pegou seus cavalos e partiram colina abaixo. Rivaille ia na frente, e todos abriam caminho para seu belo alazão passar. A opinião pública sobre o Esquadrão também havia mudado muito com o passar dos anos. Antes eram vistos como heróis iluminados de quem dependia a segurança e o desenvolvimento da cidade. Hoje eles eram mais vistos como uma tropa especial que executava o serviço sujo que o exército e a polícia não era capaz de cumprir.

E aquela missão especificamente era um serviço sujo enorme. O acampamento da estrada norte era sem dúvida um dos mais letais que tinham, com soldados bem treinados e armados que não fugiam ao combate, mas enfrentar as criaturas em seu covil — uma usina desativada a anos, que devia ser em si um grande perigo — com apenas dois esquadrões era de um nível de dificuldade quase inumano, pra não dizer cruel. Mas sem pensar nisso o grupo prosseguiu em cavalgada rápida, mantendo todos os olhos abertos e chegaram sem incidentes ao acampamento no meio da noite. Mika e Annie estavam excitadíssimos, com seus corações na mão, alarmando-se a cada ruído estranho ou movimentação ao seu lado, e completamente exauridos. Os cavalos também estavam esgotados, mas a rapidez era vital quando se deslocavam fora dos muros. Esta experiência não trazia mais nada de novo aos veteranos, mas para Mika, Annie e Reiner era o dia mais excitante de suas vidas. Estar fora dos muros pela primeira vez era mágico, mas atingiu a cada um de maneiras bem distintas. Reiner era só excitação, estava tão acelerado que parecia até estar sofrendo de uma crise de hiperatividade. Não foi possível conversarem durante a cavalgada devido a velocidade com que cavalgaram, mas agora que estavam no acampamento ele indagava sobre tudo com uma curiosidade infantil. Admirava cada montanha, cada árvore, cada pasto abandonado, cada animal silvestre rapidamente avistado entre a folhagem. E admirava principalmente a vista sem fim da esplanada em que se encontravam, um terreno que se estendia a perder de vista, com uma cadeia montanhosa belíssima bem ao fundo e um cheiro refrescante de imensidão, de sal, de vida, que pulsava livre em cada canto escuro da noite. Mika também estava animado, mas mais focado em seu próprio desempenho como sempre. Seria a primeira vez que enfrentaria criaturas num embate corpo a corpo. Uma coisa era atirar nelas a distância (e Mika era muito bom neste quesito em particular), outra era enfrentá-los somente com uma faca a curta distância sentindo aquela pele flácida encostar nele, aquela luminescência irritante invadir seus poros e estrangulá-lo. Tinha que impressionar, precisava disso — para se provar, provar a Rivaille, provar ao capitão Erwin se fosse possível — que ele realmente não era seu dom, não era só o seu sangue e que podia ser extraordinário sem tudo aquilo. Annie, como era de sua natureza, preocupava-se com tudo. Com seu bem estar, com o bem estar de seu irmão, com o bem estar de Rivaille e de todos os outros, com os perigos que aquela noite imensa escondia, com a surpresa e o nervoso que era ver o mundo pela primeira vez, pelo espanto e perigo que era ver as criaturas de perto...e reagir a elas.

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