09 de Agosto, 01:30 - AINDA SOBRE A NOITE DA FESTA

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Diário,


Dormi e acordei agora. Estou com uma insônia desgraçada e não sei o que fazer, pois as aulas começaram e precisarei acordar cedo. Mas aproveitando este momento ímpar na minha noite, continuarei a escrever sobre a longa madrugada de despedida das férias.


Nós havíamos perdido a noção do tempo. Já era quase três da manhã e nos encontrávamos numa praça da cidade. Procuramos por outra festa, porém sem dinheiro não se pode fazer muito. Além de mim e Jack, estavam no meio da madrugada o vigia da praça e um cachorro magricela.


Havíamos pegado da festa uma garrafa de whisky e resolvemos parar na praça para beber. Era o único lugar naquele momento que poderíamos ficar sem ter que pagar. Resolvi colocar música no carro do Jack. Mas pelo horário era impossível colocar no volume que agradava aos meus ouvidos.


Começou a tocar I don't care da banda Apocalyptica; servimo-nos da bebida e resolvi acender um cigarro. Enquanto curtia a comoção do fumo, percebi que o Jack se distraía com o próprio vazio.


- Dou-lhe um real por este seu pensamento, Jack. - ofereci-lhe esperando que ele pudesse pelo menos me dizer um pouco do que estava se passando em sua cabeça.


- Acho que no momento e pela companhia daria o que estava pensando sem cobrar nada. - disse-me ele me oferecendo o copo para brindarmos.


- Então comece... - instiguei-lhe.


- Eu estava pensando aqui com os meus botões: o que eu estou fazendo com a minha vida? - começou ele, voltando a olhar para o vazio. - Desde que passei a morar aqui em Dourado tenho feito cada coisa que jamais imaginaria poder fazer um dia...


- E o que te fez mudar, Jack?


- Sabe, Patrick, minha vida começou a dispersar quando minha família passou a sair da zona de conforto e mostrar a realidade. Claro, que dá pior forma possível. Eu tive que descobrir sozinho. Então, de certa forma tirei uma venda que cobria meus olhos e que ao mesmo tempo me fazia ser feliz, mas mergulhado numa mentira. Meus pais foram casados durante 26 anos. Hoje eu tenho 19, mas aos 16 comecei a vê-los de outra forma. Eles começaram a ter comportamentos diferentes. Meu pai arrumou um amigo que não saia de dentro da nossa casa e eu percebi que minha mãe andava meio que depressiva. Passei dois anos da minha vida achando que poderia estar tudo bem, mas quando tudo explodiu quase que eu ia junto também.


"Meu pai é político e um político bem aceito, bem quisto pela sociedade. Somos de uma cidade do interior de Manaus e como você sabe: vida de político deve parecer perfeita aos olhos de todos...- parou um pouco para tomar um gole seco de whisky.


- Prossiga... - pedi a ele.


- Quando descobri que minha mãe tinha um câncer no esôfago já era tarde demais. Eles haviam escondido isto de mim. E o pior: meu pai estava tendo um caso com o amigo dele que tanto nos visitava. Tudo girava ao meu redor de uma forma que me deixava sem rumo, sem direção. Hoje faz 1 ano da morte de minha mãe e eu sinto tanto por não ter percebido isso antes: que ela estava doente...não deu tempo ela saber que eu a amava mais que tudo e... que... sinto muito a falta dela...


As palavras de Jack rasgavam o meu peito assim como dilaceravam o coração dele. E de repente nos vimos no meio da praça, sozinhos, abraçados e chorando a mesma dor ao som de Chasing cars da banda Snow Patrol.


Tenho certeza que a partir daquele momento nunca mais esquecerei aquela música.


Nossa vida é assim: para cada momento uma trilha sonora. E quando deixamos a música narrar nossa vida, nos tornamos mais fáceis de estarmos em todos os lugares. E não importa o momento ou contexto, mas sempre nos lembraremos de alguém por conta de alguma canção. Isso acontece também com perfumes. Mas naquele momento, chasing cars, seria de fato nossa música. E perduraria eternamente marcando a nossa amizade.


- E seu pai, Jack, onde ele se encontra agora? - perguntei-lhe dando uma leve palmada em suas costas.


- Bem, depois que mamãe faleceu o romance entre ele e o amigo se intensificou. Pensaram em morar juntos, mas eu fui totalmente contra. Ameacei entregá-los para a imprensa. Não por preconceito, mas por ódio, pois ele me escondeu toda a doença de minha mãe e por causa dele não tive como aproveitar o pouco tempo que me restava ao lado dela.


- Entendo... - disse-lhe acendendo outro cigarro.


- Mas o pior de tudo foi o que fiz para me vingar dele...


Esperei que ele acendesse o próprio cigarro e colocasse mais uma dose da bebida para nós dois. Enquanto isso, eu aproveitei para trocar de música, pois estava tocando The scientist da banda Coldplay. A próxima música a nos acompanhar seria It's just that way de Alan Jackson.


Fiquei surpreso com o tipo de música que Jack apreciava. Bastante eclético, por isso ficava difícil defini-lo, pelo menos naquele momento era quase que impossível.

Enquanto a música tocava ele continuou:


- Fiquei esperando a hora certa de atacar e quando chegou fiz da pior forma possível. Numa bela tarde de sábado, meu pai chega de uma fatídica reunião na câmara e se depara com seu filho tomando banho com o próprio namorado.


- Como assim? Namorado? - assustei-me.


- Sim, Pat! O namorado de meu pai. Eu o seduzi e no momento certo deixei tudo pronto para que meu pai nos pegasse no flagra.


- E depois o que seu pai fez?


- Ele terminou o namoro e me colocou para fora de casa. Por isso estou morando com a minha tia aqui em Dourado.


Aquilo me remoeu por dentro. Como o ódio havia tomado conta de meu amigo e o deixado passar dos limites. Como?


Olhei para a praça e, em seguida, para os olhos de Jack que pareciam lutar para ficarem abertos; percebi que o dia já estava raiando. Convidei-o para dormir em minha casa, mas ele se recusou, então, me levou para casa e foi embora.


Não paro de pensar na vida dele e de como deve ser triste carregar tanto rancor por alguém de seu próprio sangue.


Chegando a minha casa, tentei fazer o mínimo de barulho possível. Fiz um sanduiche e tomei com leite. Ao me deitar coloquei meus fones e dei play na música que parecia estar me esperando: You and me da banda Lifehouse. De repente meu quarto começou a girar. Apaguei.

Confissões de um TaurinoOnde histórias criam vida. Descubra agora