- Huh...?
Enquanto arrastava o braço pesado pelo chão, esfregando o pano molhado apenas com a força do ódio, subitamente Theoto teve sua atenção direcionada ao telefone em cima do balcão da cozinha. E como a oportunidade perfeita para fazer outra coisa apareceu, ele não pensou duas vezes antes de se levantar.
No intervalo entre respirar para erguer o tronco com a ajuda dos joelhos, diversos estalos soaram, como se algo tivesse acabado de ser esmigalhado. As pernas bambearam, mas o garoto preferiu acreditar que apenas ouviu algo erroneamente, ao invés de perceber o mal funcionamento do próprio corpo.
- Hunff...
Quando debruçou-se no balcão, suspirou profundamente, tal qual um pedaço da alma pareceu ter vazado de dentro de si. Apertando repetidamente a tela do celular, a tela ligou e, na barra de notificações, dentre os diversos pop-ups de jogos e vídeos novos de canais que ele seguia, destacava-se o exagero de mensagens de um único contato.
Para um bom entendedor, meia palavra é o bastante. Por isso, ele conseguiu imaginar as diversas caras e bocas que Lucca fazia enquanto enviava uma coletânea de 34 mensagens seguidas.
Na primeira vez em que isso aconteceu, ambos não possuíam mais do que poucos meses de amizade. A carga demasiada de mensagens assustou Theoto de forma que ele realmente se preocupou a ponto de telefonar logo em seguida, sem se importar com o conteúdo que estava sendo escrito; grave erro. Naquele dia, ele foi obrigado a ficar cerca de duas horas escutando sobre como o garoto de cabelos ondulados havia descoberto uma nova build para seu personagem.
À primeira vista, não se parece ruim se olharmos pela perspectiva do jovem rapaz, que partilha do mesmo gosto que Lucca por Dark Souls. Entretanto, o acumulo excessivo de mensagens somadas ao fato de que era tarde da noite, e o principal: Theoto não queria escutar nada daquilo no momento, fizeram poucas horas parecer uma eternidade deitado em uma cama de espinhos...
As mensagens em turbilhão continham coisas como "A DLC foi a melhor coisa que eu já joguei", "Eu tô chorando" e "Esse é o melhor jogo da minha vida".
- ...
Diferente de Theoto, que estava sendo movido apenas pelo ódio, Lucca, na sua casa, estava sofrendo de um processo chamado de hiperculturemia jogando a nova versão que havia comprado de Dark Souls 3. Talvez não fosse a primeira vez, mas certamente estaria experimentando uma sensação tão única que se enquadraria nessa ocasião.
O garoto, com um dos panos jogado nos pés, entortou o rosto pela injustiça que estava acontecendo bem diante de seus olhos. Não era justo que ele precisasse estar fazendo tudo isso, ainda mais sozinho. Lucca tinha seus pais e, acima de tudo, uma empregada para fazer todo o trabalho doméstico, e nem mesmo era cobrado por não realizar essas tarefas simples. Theoto, por outro lado, estava sendo obrigado por alguém que nem ali estava.
Por isso, responder as mensagens de forma direta, encabulado. Não era que ele realmente não quisesse conversar com Lucca, afinal, amava tanto quanto o garoto aquele jogo. Mas precisava terminar de limpar seu apartamento. Não era mais uma questão que ele podia ignorar.
Theoto era péssimo em qualquer tipo de trabalho doméstico, mas ele era especificamente terrível em limpeza.
Surpreendentemente, sabia cozinhar. Na verdade, o garoto sabia preparar algo quente e que geralmente era comestível, desde que tudo viesse pronto e que deixasse de lado coisas como a apresentação do prato e o sabor, além de assumir a possibilidade de lesões corporais graves em algum momento durante o processo. Ele não era completamente incapaz de preparar comida, apenas não tinha a força de vontade necessária para tentar fazer alguma coisa mais decente do que apenas esquentar alimentos industrializados.
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A Garota e a Chave
RomanceApós o início de mais um ano, começa o novo período escolar. O retorno dos dias pacíficos e maçantes teve início, mas logo fora interrompido por uma presença feminina um tanto quanto... súbita. "Você é irritante demais para ser ouvido--".