22. Encontro com Kaja'a (parte 2)

7 2 0
                                    


De repente, um barulho como algo se movendo dentro do rio fez Sérgio olhar e, para sua surpresa e espanto, detectar um movimento maior que o normal sob as águas escurecidas de barro, como se algo se movesse ali, contra a correnteza. Na verdade, como se algo MUITO GRANDE se movesse ali. Tinha certeza de que, fosse o que fosse, emergira do sumidouro.

Ele se assustou e se levantou com o olhar fixo no ondular das águas se movendo em círculos. Na tela do celular, mais uma vez, o personagem se deparava com a margem do rio, sabendo que o perseguidor o estava alcançando.

Um movimento muito maior, mais nítido e repentino, como um barulho de calda de um enorme peixe batendo nas águas, fez o coração de Sérgio acelerar muito. Algo surgia nas águas. Algo com o corpo de um peixe enorme, ou pior, com o deslizar de uma ENORME SUCURI.

Sérgio olhou para o lado onde o grupo de adultos tinha ido e pensou em sair correndo para lá. Mas a COISA já estava emergindo. E era ENORME! Ele, ainda que tentasse, não conseguia mais sair dali. Seus pés estavam fixos no chão, as mãos trêmulas. O celular caiu de sua mão e sua tela, que ficou virada para cima, estava vermelha de sangue. O herói do jogo tinha sido despedaçado pelo monstro que o perseguia e que se lançara nas águas atrás dele.

Na lagoa uma cabeça começou a emergir. Era escorregadia, preta e cheia de pelos. Em um movimento forte moveu-se para cima e lançou para trás os longos pelos. Então Sérgio viu que não se tratava de pelos. Eram, na verdade, cabelos. LONGOS CABELOS que, ao serem lançados para trás, revelaram um rosto.

Sérgio estremeceu ainda mais e ficou estático. Tentou gritar, mas nenhum som saiu de sua boca. Estava paralisado como nos pesadelos que costumava ter. O ser deslizou nas águas em sua direção.

No alto, uma arara vermelha voou e fez um barulho, como se chamasse seu nome e pousou em seguida em uma árvore na margem. A arara fazia um barulho infernal e se agitava muito. A julgar por suas ações, ela queria tirar Sérgio de seu transe.

Na água, o estranho ser deslizou mansamente. Se Sérgio conseguisse visualizar, perceberia que tinha braços e corpo humanos, mas a única coisa de que o garoto conseguia se dar conta era o rosto. A criatura tinha o rosto de uma moça. E era lindo, esfuziante. Seu cabelo, que descia molhado até às costas, refletia as cores do arco-íris.

Uma garoa fina começou a cair de repente, sob o sol, e um arco-íris também se formou no céu.

A arara alçou um voo rasante perto de Sérgio, fazendo muito barulho. Foi ouvida muito longe, pois outras aves e animais se agitaram na mata, em resposta. Mas, ainda assim, ela não conseguiu tirar o garoto do estado em que se encontrava, inerte. Ele estava enfeitiçado por Kaja'a.

Ela, Kaja'a, era a Senhora das águas, dos peixes e dos animais aquáticos. Aquela que habita as águas dos rios, onde tem seu reino e mantêm os animais aquáticos sob seu domínio desde os tempos primeiros. Tempos nos quais seu próprio pai, um deus, a aconselhou a manter seus animais sob controle para que não invadissem a terra e matassem seres terrestres.

Kaja'a era a irmã mais nova de Jaria Ro'ysã, a que foi a primeira protetora dos seres aquáticos e havia sido destinada ao mesmo ofício. Ela era aquela que, após ter seu marido Mborevi — o que se tornaria a futura Anta — morto e decepado pelos irmãos, se entristecera a tal ponto que entrou nas águas de onde nunca mais conseguiu sair, devido ao seu estado de profunda tristeza. Foi encantada e se tornou a deusa dos animais que habitam as águas.

E a Senhora dos seres aquáticos os mantinha sob seu comando. Eles eram seus animais de estimação e tinham também a sua proteção. E ela NÃO AUTORIZARA pescaria ali. Ninguém havia cantado para ela as canções sagradas pedindo permissão para entrar nas suas águas ou para que pudessem tirar de lá o seu sustento. Ela não dera consentimento para que pescassem naquela localidade. E estava ali para cobrar o preço.

É claro que Sérgio não sabia disso. E naquele momento estava paralisado por ela, cuja beleza ultrapassava a razão. Kaja'a tinha a aparência de uma adolescente e seu rosto e corpo eram encantadores. Ela se aproximou de Sérgio e pegou em uma de suas mãos. O rapaz não se moveu, encantado com os olhos da deusa.

A arara vermelha estava cada vez mais agitada em volta dele. A deusa se irritou com a ave e fez um gesto em direção às águas. Um ser aquático desconhecido saiu de lá rastejando e se dirigiu, ameaçador para a arara, que não viu outra solução senão se colocar a salvo, voando e se pousando na árvore mais alta.

Então Kaja'a conduziu Sérgio calmamente para as águas barrentas do rio, onde os dois entraram até ficarem parcialmente submersos. Apenas suas cabeças eram vistas acima da superfície. A moça sorriu para o garoto e de seus lábios surgiu um som, como uma canção de ninar. Sérgio não conseguia tirar os olhos daqueles lábios. A música penetrou seus sentidos, envolvendo-o, como se o acalmasse.

Então, com um gesto, a divindade agitou as águas. Ondas se formaram, envolvendo-os até submergi-los. Sergio assustou-se por instantes e ela o beijou Ele adormeceu em seus braços e ela, imergindo, conduziu lentamente o rapaz em direção ao grande buraco, que nesse momento se assemelhava a uma boca, pequenos jatos de espuma pulavam, dando um estranho aspecto de dentes. Os dois sumiram, em seguida nas profundezas turvas que desapareciam na entrada da gruta que ficava parcialmente submersa.

No galho da árvore a arara gritou, ainda mais agitada. No céu, o arco-íris se desfez. A suave garoa também acabou. Se alguém estivesse por ali e pudesse ver sob as águas notaria sangue sendo revolvido no torvelinho.

Nas areias perto da barraca a tela vermelha de sangue se apagou e o celular tocou. Sobre o número que se via estava escrito: Pai.

O som da chamada se repetiu mais três vezes, até que o silêncio se abateu sobre o local, tendo apenas o rio como testemunha. 


><><><

(Não se esqueça de clicar na estrelinha) 

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora