23. Uma tempestade na escuridão (parte 1)

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Sua mãe sempre atenta, procurou alguns vizinhos e ficou de falar com um dos mais velhos, estava desconfiada de que sua filha estivesse sofrendo algum tipo de influência sobrenatural. Seu marido era contra de início, mas aceitou a ideia ao confirmar o que sua esposa percebia.

Ele lembrava de sua escolha, a de viver longe das tradições, porém, sabia que o que os brancos chamavam de superstição, para seu povo era um modo de vida, eram suas raízes e por mais que ele fizesse vista grossa, existiam assuntos e eventos que a razão não explicava facilmente.

***

O dia ainda estava longe de amanhecer. A noite se fazia tão escura do lado de fora quanto do lado de dentro das casas. Todos, por toda a aldeia de Pirakuá, ainda dormiam.

Então começou o vento. Primeiro, só um vento fraco, comum, refrescante, que envolvia as árvores com delicadeza. Ainda ninguém havia visto ou reparado, mesmo porque não havia ninguém lá fora, na escuridão, para prestar atenção.

No entanto, o vento foi ficando mais e mais forte. Os galhos das árvores começaram a ficar cada vez mais agitados e, no céu preto longínquo, um raio brilhou, indo de cima abaixo no horizonte.

Ninguém viu isso também, com exceção de uma pessoa, pois, nos caminhos escuros da mata, atravessando as pequenas roças indígenas, passando pelos córregos, após ter atravessado o Rio Apa em uma canoa, Tumé Arandu chegava.

Tumé Arandu! O próprio. Em corpo humano, em carne e ossos. O mesmo das antigas histórias contadas perto do fogo, nas rodas de mate e tereré, um dos primeiros habitantes da Primeira Terra. Um dos privilegiados seres humanos a conviver, em solo terrestre, com os deuses criadores.

Se você conhecesse as histórias, relacionaria o vento, os trovões, raios e a chuva, que apontava longínqua, à presença de Tumé naquele lugar, porque o próprio Tupã o acompanhava, e a presença de Tupã era carregada de raios e trovões. Quando Tupã se movimenta no céu, o seu tembetá, raspando em seus lábios e dentes, criam os raios, mas com olhos humanos jamais se vê isso. Somente os deuses, e um grupo seleto e pequeno de humanos, podem ver. Felizes são esses privilegiados, por poderem testemunhar essa maravilha!

E ali estava ele: Tumé Arandu.

Mas, afinal, o que ele estava fazendo na terra indígena Pirakuá, rondando o lugar próximo às casas e barracos, onde todos ainda dormiam? A verdade é que Tumé Arandu está ligado às aventuras em lugares diversos. Ele é aquele que transita entre os diferentes clãs; o Sábio.

No entanto, ali em Pirakuá não se tinha lembranças da passagem dele. Não estava nas histórias, nem nas memórias, nem se falava sobre isso ao lado do fogo ou em roda de tereré. Por isso mesmo, quem o visse chegando talvez não o reconhecesse.

De forma excepcional, ele não usava suas vestes, pinturas e adornos originais. Usava uma calça comprida, tipo jeans, e uma camiseta que o tornava igual a qualquer outro. Seus cabelos eram pretos, como eram pretos, também, os seus olhos.

Talvez o que o fizesse um pouquinho diferente dos outros indígenas do local fosse o poncho de algodão branco, tão branco que chegava a ofuscar a visão de quem o visse durante o dia, e aquela espécie de sainha, também de algodão branco, que usava sobre suas roupas de humanos comuns. Ah, e o tembetá (1). Ele usava um longo e perfeito tembetá no furo de seu lábio inferior, como o deus Tupã, que, enquanto acompanhava dos patamares celestiais o seu caminho na Terra, mexia, com a língua, o tembetá entre os lábios, só que Tumé não produzia os raios e nem os trovões como o deus.

Por falar nos raios e trovões de Tupã, lá estavam eles. Primeiro só um ou outro, esparsos, na escuridão longínqua. Depois, mais frequentes, mais próximos, e, por isso mesmo, ressoando de forma mais intensa a cada vez.

Nesse instante, os humanos da Aldeia Pirakuá começaram a acordar. É que a intensidade do barulho dos trovões, da luminosidade dos raios e da força dos ventos chegava a balançar casas. Galhos secos eram quebrados, árvores arrancadas. Não tinha como não acordar.

Então a chuva chegou.

Um raio caiu em uma árvore próxima à casa da família de Porãsy, fazendo-a estremecer. A casa, é claro, porque Porãsy estava dormindo emaranhada a lençóis e junto à sua irmãzinha. Todos os humanos dentro daquela casa, naquele instante, acordaram num susto. Também Porãsy e as irmãs.

Os raios e trovões tão próximos indicavam uma coisa: Tumé, o alvo dos olhares de Tupã, se aproximava da moradia.

— Nossa! Que barulho foi esse? — Porãsy não pôde evitar de externar seu susto e medo.

— Foi só um raio que caiu aqui perto. — A irmã mais velha tentou passar às menores uma calma que ela mesmo não tinha, naquele momento. Também estava assustada.

Mais raios e trovões foram ouvidos. Pareciam se aproximar cada vez mais da casa. Quem olhasse de longe veria um padrão intrigante: era como se os raios fossem passos se aproximando, as descargas elétricas caminhavam nos arredores.


Nota de rodapé. 

1. Tembetá: do Tupi antigo, também chamado de tametara, metara e pedra do lábio, é o objeto duro e inflexível que os índios brasileiros têm o costume de enfiar em um furo artificial feito no lábio inferior. Tem o formato alongado, diferentemente do botoque, que tem o formato circular.

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(Continua)  

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora