29. Dois filhos de Tau e Kerana (parte 1)

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Naquele momento, Porãsy não pensou, não raciocinou e não calculou quais as consequências que seu ato, talvez precipitado, pudesse ter. Ela se enfiou por entre os ramos, galhos, folhas e espinhos que cercavam a estrada, entrando no mato e saiu correndo em direção ao som do assobio.

Seus companheiros, tomados de surpresa, tentaram correr atrás dela, mas Porãsy era rápida e conseguiu sumir das vistas deles. Só escutava os gritos chamando-a, mas não voltou. Seguia correndo em meio à mata.

Ainda que fosse Jasy Jaterê, se ele estava com sua irmã, ela o alcançaria e, se preciso fosse, lutaria com ele para recuperá-la. E foi assim que, no momento mais doloroso para Porãsy, todas as dúvidas que um dia tivera sobre as histórias do avô sumiram. Todas elas.

Jasy Jaterê, o quarto filho de Tau e Kerana, possuía características humanas. Ele, em sua vida e ações na Terra, assumia a forma e aparência de uma criança de uns cinco ou seis anos. Recebera dos primeiros deuses a designação de ser o senhor do sono e da sesta e sua principal característica se tornou o rapto de crianças nesse horário. Se ele tinha como fugir disso, não se sabe. Só se liberta de maldições se essas forem quebradas e os irmãos lendários foram amaldiçoados desde o nascimento, presos por toda a eternidade às suas vocações monstruosas. Nunca se ouviu antes que algum deles houvesse mudado algum de seus hábitos.

A Jasy Jaterê fora dada, ao sair do ventre de sua mãe, as qualidades físicas e a inocência das crianças humanas, e seu destino eterno fora selado em sua aparência. Para sempre sentiria prazer de brincar com os filhos dos humanos. Sua satisfação e prazer egoísta seria estar com eles e, então, o que traria alegria à sua vida seria também o que o condenaria.

Nos preciosos momentos em que as famílias humanas estivessem relaxando ou tirando um cochilo após o almoço, esse seria o instante de ação do pequeno deus. Tinha sido esse o horário designado para ele ir atrás de suas vítimas. Se via uma criança brincando fora de sua casa, sozinha, a levava consigo, brincava com ela e, logo após o período do descanso da sesta, a devolvia. Essa era a sina do duende, eternamente. Brincar em meio à sua solidão, pois nunca poderia conviver entre mortais de sua idade, apenas obtinha amigos através de seus subterfúgios e raptos temporários.

Mas naquele momento Porãsy não tentou se lembrar das características de Jasy Jaterê ou do seu jeito de agir. E o pequeno ser tinha um outro aspecto importante do qual ela também não se lembrou: ele tinha a capacidade de se tornar invisível. Com isso, podia confundir as pessoas que tentassem ir atrás dele ou tentassem capturá-lo, mas por que ela se lembraria disso, e para quê? De qualquer forma, a decisão de ir atrás dele seria a mesma.

Embrenhando-se no mato, a menina lutou para vencer e ultrapassar tudo o que surgia em sua frente. Para isso, ora se abaixava, ora pulava obstáculos, ora empurrava com o corpo o que se opunha a ela e seguia em frente. Abrindo caminho com os braços, mãos e pernas, adentrou o emaranhado verde.

Não se deu conta naquele momento, mas estava com vários cortes e pequenos ferimentos nos braços. Sua adrenalina lhe tirava esses pequenos incômodos. Os ouvidos estavam atentos aos sons ao redor. Ela tentava ouvir os assobios... e segui-los.

Então ela o viu... no galho de uma árvore. O mesmo garoto de cabelo dourado e pele branca que vira no dia em que chegaram em Pirakuá. O pequeno garoto branco de cabelos estranhamente loiros. Ele estava na árvore... e olhava para ela...

Porãsy ainda estava um pouco longe de onde o pequeno ser se encontrava, ainda assim percebeu o olhar dele fixo nela. Aquilo foi assustador. O pelo dela se arrepiou mais uma vez. O coração acelerou.

O garoto tinha o cajado na mão e Porãsy se lembrou, não sabe como, que aquele objeto era mágico. Veio-lhe à memória algo que o avô repetira diversas vezes ao contar suas histórias: "A magia e poder de Jasy Jaterê está em seu cajado. Se você conseguir pegar o objeto, poderá subjugá-lo e tê-lo sob seu domínio".

Ela tinha que pegar o cajado. Mas como? Era impossível chegar até onde o garoto estava e, ainda que conseguisse isso, depois ainda teria que escalar a árvore e, principalmente, tomar o seu instrumento de poder. O que fazer? Nunca fora uma garota com muitas habilidades físicas. Ainda que as tivesse, como poderia usá-las ali, com aquele menino monstro? Sim, porque agora ela não tinha mais dúvidas de que aquele ser era um dos sete monstros lendários.

Porãsy vasculhou com o olhar toda a vegetação e o solo perto de Jasy Jaterê, na tentativa de localizar Amandy, mas não a viu em nenhum lugar. Teria mesmo a irmãzinha sido raptada por ele? Se isso havia acontecido, onde estaria?

Novamente, uma lembrança a fez tremer. Segundo a narração do avô, Jasy raptava crianças, as quais devolvia, depois, com um beijo mágico. No entanto, em alguns casos, ele não as trazia de volta, mas as levava para o seu irmão mais novo, o Aô-Aô, para que fossem devoradas. Não, isso não. Porãsy tentou afastar esse pensamento. Minha irmãzinha está bem e a encontrarei sã e salva. Talvez, até já esteja de volta em casa. Sim, é isso. Amandy está em casa, com nossos pais. Era nisso que acreditaria.

Ainda assim, ela iria até o menino mágico. Iria se precaver, andaria com cuidado, da forma mais silenciosa possível, surpreenderia o duende loiro e lhe roubaria o cajado mágico. Quer dizer, pelo menos era o que tentaria fazer. Se conseguisse ter posse do bastão de Jasy, descobriria se ele raptara mesmo Amandy ou não.

Com muito esforço, continuou avançando. Porém, sem que pudesse entender como aquilo fora possível, uma touceira de plantas espinhosas surgiu em sua frente, impedindo-a de continuar. As plantas formavam um muro verde extenso e afiado. Não tinha como seguir por ali. Tentou quebrar galhos, mas eles não cediam. Tentou afastar, mas prendiam-se uns aos outros. O garoto, no entanto, continuava lá, olhando para ela com aquele olhar enigmático e maléfico.

A garota insistiu mais um pouco, mas se convenceu, por fim, de que não dava. Não por ali. Tinha que voltar um pouco e fazer uma outra tentativa por outro lado, onde fosse possível fugir das plantas espinhosas. No entanto, ao dar meia volta, descobriu que voltar também não era tão simples. As plantas formavam um cerco intransponível. Como ela conseguira chegar até ali, não conseguia entender.

Um outro assobio, agora mais forte e mais perto, assustou novamente Porãsy e seu coração voltou a acelerar. As mãos ficaram trêmulas. Olhou para o lado, de onde veio o assobio e, em outra árvore, bem mais próxima, estava o menino de cabelos dourados.

Porãsy o encarou. Seus olhos tinham um brilho estranho, algo fúnebre. Com um movimento rápido o garoto saltou para uma outra árvore e depois para outra, e de novo para uma outra. De árvore em árvore ele ficou rodeando Porãsy. Ela estava ficando tonta. Girava em volta de si, tentando acompanhar o movimento do menino. Estava ficando apavorada e se machucava nas plantas. 

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(continua) 

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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora