2. A festa de aniversário

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Enfim, chegou o dia da festa de aniversário das meninas. Quando, naquela sexta à tarde, os adultos voltaram do trabalho e os jovens, adolescentes e crianças chegaram da escola, as árvores em volta do barraco onde as irmãs moravam estavam enfeitadas com balões.

Havia uma cobertura grande de lona, para o caso de chover, e, debaixo da cobertura, uma espécie de mesa feita de paus. Sobre a mesa, também enfeitada com balões nas beiradas e coberta com uma toalha simples, havia copos descartáveis, pratos — cada família havia trazido os seus pratos e talheres e colocado sobre a mesa — e, no centro, um espaço para o bolo, que ainda não estava lá. O pai das meninas já havia saído para pegá-lo na cidade, na padaria onde o haviam encomendado.

Cadeiras e bancos que os vizinhos trouxeram completavam a mobília do lugar, e muitos desses vizinhos e amigos já estavam por ali, uns tomando tereré, outros ajudando a mãe, que preparava um jantar especial, em fogueiras que foram acesas perto do barraco.

O arroz fora feito em duas enormes panelas emprestadas da escola, e a pucherada, que as mulheres tinham começado o preparo no dia anterior, fumegava borbulhante, o cheiro delicioso fazendo com que a fome, que já era uma companhia presente, se tornasse ainda mais percebida.

Não podia faltar, em reuniões como aquela, a tradicional mandioca, que já estava sendo cozida, e o churrasco, que era assado por parentes nos arredores. O cheiro deste último chegava aos narizes, animando ainda mais as conversas.

As festas e reuniões, regadas a comida, canto e dança, eram necessárias e especiais. Não era só a questão de comemorar um aniversário ou comer bolo e tomar refrigerante, ou mesmo se divertir em uma roda de Guaxirê. Momentos alegres e animados eram o combustível para o povo sofrido e o que fazia a parentela se erguer, se fortalecer. Os laços familiares formando uma trama trabalhada e forte, e aquele momento marcava uma passagem e revelava que Porãsy já podia ser mãe, o que, por si só, era a maior comemoração.

Em tempos antigos, a adolescente ficaria por meses reclusa em casa, receberia ensinamentos e depois teria o cabelo cortado bem curto, mas isso não acontecia mais. As meninas pouco sabiam dessas tradições. A etnia, no entanto, ainda tinha o seu jeito de demarcar os ritos de passagens. Se não pela reclusão da menina e a iniciação dos garotos, agora eles faziam festas, comemorações que, no caso das meninas, muito se assemelhava às festas de debutantes dos Karaí.

As pessoas chegavam e tomavam os seus lugares. Cada um que voltava do serviço ou da escola se banhava e depois se dirigia ao local da reunião. Todos da localidade foram convidados. Várias rodas de tereré surgiram, bem como várias conversas.

Logo estavam todos ali, toda a comunidade da Aldeia Apyka'i, que consistia em umas cinquenta pessoas. Alguns parentes mais próximos, como tias e tios, que moravam em outras aldeias não distantes daquela, também se fizeram presentes. Eles chegaram durante a tarde e se juntaram aos outros, ajudando no preparo da festa e sendo o que eram por direito: parte da família.

Quando começou a escurecer, e com a luz bruxuleante da lâmpada ao fundo trazendo um contraste de brilho e cores, as três irmãs surgiram pela porta do barraco. Com pintura leve nos rostos, cortes novos no cabelo que haviam sido hidratados e passaram por escova e chapinha, fazendo com que o brilho negro se destacasse, as meninas estavam bem produzidas. Todas elas usavam vestidos e estavam lindas.

Yvy Rajy sorria tímida, o que fazia seus olhos ficarem ainda mais apertados. Amandy saltitava. É que quando ela se movia, seu vestido branco com pontinhos brilhantes refletia a luz, faiscando. No entanto, Porãsy era a mais bela das irmãs e ela não precisava fazer nada para se destacar, para chamar atenção.

Todos os olhares se voltaram para as três quando elas surgiram ao alcance das vistas, mas cada olhar se deteve em Porãsy. Aquela menina tinha algo que as outras meninas não tinham. Dela emanava mistério, segredo. Fazia os corações sonharem. Sua presença ofuscava a razão, trazia apreensão e transmitia segurança, ao mesmo tempo. Era como magia.

Cadeiras foram colocadas perto da mesa para as três, que se sentaram. Ao lado, mais uma cadeira, onde o avô paterno, Carlos Tupã'y, com seus sessenta anos, se assentou também. A tia Enaiah, que viera com o Marido da Aldeia Panambizinho começou a servir as três aniversariantes. Amandy foi a primeira a receber seu prato de comida.

Logo todos estavam comendo. Cada um procurou um lugar para se assentar e se ajeitar da melhor forma possível. Os grupos, de uma forma geral, se organizavam a partir da família nuclear. As conversas eram alegres. Aquele era um momento de pensar no que era bom, em onde havia esperança, na renovação da vida. As crianças brincavam, corriam. Havia brincadeiras de roda, de pegar.

Quando a noite chegou e, com ela, a escuridão, outras fogueiras foram acesas, mais duas delas, e iluminaram, fazendo a imagem das pessoas tremular. Os casos, notícias e histórias continuavam.

Então, em meio ao jantar, o pai chegou com o bolo, que era bem grande e muito lindo. Amandy e as outras crianças rapidamente deixaram as brincadeiras e se posicionaram perto dele. Alguém tocava violão, alguns cantavam. As risadas estavam em todas as partes, em todos os grupos formados.

Após todos jantarem, cantaram parabéns e o bolo foi servido. Quando todos haviam comido e se fartado, começaram as danças. Havia aqueles que preferiam as danças tradicionais, outros as danças e músicas de baile Karaí, mas, independentemente das preferências, todos se divertiam.

As horas passaram, o alimento escasseou, a bebida também. As rodas de danças diminuíram, à medida que as pessoas se despediam e saíam.

Os primeiros a se retirarem foram os mais idosos. Em seu passo lento, muitas vezes apoiados em paus que serviam de bengala, eram os primeiros a sentirem o cansaço e o sono.

Depois deles, as famílias, uma a uma, se dirigiram aos seus barracos. O deus da noite, em forma de lua, os havia presenteado com muita luz na noite suave; a brisa também se fez presente, refrescando o calor. De forma seguida e constante, cada um se foi e o silêncio se instaurou.

Quando deu meia noite, não havia mais ninguém por ali, senão os cães roendo os ossos. Todos já haviam se dirigido para suas respectivas casas. Com isso, a família das aniversariantes decidiu ir descansar também.

Depois, deitada em sua cama, que dividia com Amandy, Porãsy fechou os olhos e repassou seu dia. Havia sido um dia lindo. Apertou as pálpebras, na escuridão, com intuito de aprisionar as lembranças. Queria que elas fossem eternas. Uma alegria recheada de uma aconchegante paz tomou conta do seu ser quando seus olhos se fecharam para os sonhos e nestes a festa continuava, em lugares mágicos e desconhecidos.


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Anexo 

Aqui uma foto do lugar chamado Apyka'i, onde indígenas Kaiowá vivem a espera que o governo federal  demarque suas terras e possam sair da beira da estrada. 

Essa é uma das casas do local. Ao fundo é visível a rodovia e os carros e caminhões que passam o tempo todo. 

Deste local meninas como Porãsy e as irmãs pegam o ônibus para a escola

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Deste local meninas como Porãsy e as irmãs pegam o ônibus para a escola. Aqui é o Tekoha dessa comunidade indígena: o  lugar de serem o que são. Aqui viveram, morreram e foram enterrados os seus antepassados. Ao fundo pode-se notar as lavouras dos brancos a perder de vista. Lavouras e fazendas sobre terras tradicionais indígenas. 


Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora