27. Tupinambá e Guarasyáva

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As entranhas das meninas se reviraram. As três ainda não tinham se dado conta, até aquele momento, da relação delas com a história de Kerana. De Porãsy elas sabiam, já que o nome dela é o que sempre aparecia, mas não os nomes das outras duas.

Elas ficaram por instantes sem dizer nada, quase sem ar. No entanto, a memória clareava. Se recordaram das raras vezes em que os seus nomes foram citados nas histórias, só não entediam como não se deram conta disso antes. Então, como Porãsy, viram-se no patamar e tempo dos primeiros humanos, e estavam juntas a ela e Thomas, com o mesmo tipo de roupas, enfeites e pinturas. Esse conhecimento as encheu de força. Daí não tiveram mais nenhuma dúvida...

Na visão das três meninas, e de Thomas também, eles observavam uma aty gwasu, grande reunião guarani, de conselho tribal, onde os participantes, homens e mulheres, discutiam os últimos acontecimentos ocorridos no território ocupado pelos primeiros humanos.

As meninas viam e ouviam os relatos das pessoas presentes ali, e perceberam que não eram notados, como acontecera anteriormente com Porãsy.

— Temos que encontrar uma maneira de deter os filhos de Kerana — disse um dos homens mais velhos ali presentes, talvez pertencente à primeira geração de humanos que ocuparam a Terra.

— Mas fazer o quê? Ainda que monstros, eles são os filhos de minha filha. São da nossa família — disse um outro homem com aparência de ter mais ou menos a idade do que falara anteriormente e que identificaram como sendo Marangatu, o pai de Kerana e avô dos monstros lendários. Os adolescentes o observaram. Sua feição inspirava amor e compaixão, além de uma angústia e apreensão. Com certeza, ele não queria que nada de mal acontecesse aos filhos de Kerana.

— Mano, não é hora de ter compaixão. É hora de salvar a descendência humana. Disso depende a nossa etnia — voltou a falar o homem que havia falado antes. Agora Porãsy sabia quem ele era: Tomas Arandu, o sábio, ou Pa'i Tumé, a ascendência de Thomas. Ele tinha a mesma aparência, a mesma postura e sonoridade na voz que seu primo, só que mais velho.

A assembleia continuou por algum tempo. Mais de uma opinião foi manifesta sobre o que precisavam fazer. A conclusão que o grupo tirou de tudo era de que a vida dos guaranis se tornava cada vez mais difícil devido à atuação maléfica dos sete irmãos monstros. Todas os acontecimentos ruins vividos naquela ocasião pelos habitantes da Aldeia e território dos humanos eram atribuídos a eles: a fome que eles passavam, o ódio que se instalara entre eles e que causava muitas brigas e lutas, os desaparecimentos de crianças... ou seja, tudo. Eles tinham um inimigo e precisavam destruí-los, era isso ou desaparecer na areia do tempo como um nada.

Decidido a colocar ordem na aldeia e apaziguar os ânimos, o sábio Tumé Arandu tomou a palavra e deu o veredito final: era preciso elaborar um plano, a fim de destruir os monstros.

Ao dizer Marangatu, o pai de Kerana se levantou e saiu da reunião. Uma senhora saiu com ele, chorando. Devia ser a mãe da jovem que gostava de dormir. Tumé Arandu se sentiu sem graça e desconcertado. O que discutiam era para uni-los e, não, os afastar como estava vendo. Seus olhos marejaram por segundos, mas respirou fundo e olhou firme a assistência. Era o certo a se fazer, não havia como voltar atrás.

O grupo de adolescentes de Pirakuá foram se sentindo mais distantes da reunião, e a visão se dissolveu. Estavam todos de volta à realidade. O fogo crepitava na fogueira e Thomas olhava para elas.

— Então — disse Thomas ao perceber que elas estavam de volta e que a visão havia se dissipado. — Entenderam o que se deu no princípio?

As meninas estavam atordoadas, os corações acelerados. Elas não sabiam se era pela perplexidade da visão, ou se era uma reação ao chá da ka'a ruvixa. Alguns segundos se passaram até que novamente se localizassem no tempo e espaço de suas vidas reais. Thomas deu tempo a elas. Ele mesmo havia ficado muito confuso quando tomara a erva pela primeira vez.

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora