1. Porãsy

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Olá. Aqui o primeiro capítulo da história de Porãsy, a garota das lendas indígenas. Espero que gostem. 

Observação: Os números em negrito na história se referem a notas de rodapé.

*** 

Porãsy morava em um barraco. Não era, assim, um barraco grande, claro, aberto, para que o ar circulasse. Também não era como uma barraca de camping, de cores vivas, desmontável, com um zíper para fechar. Era um barraco-moradia de nativo sem-terra, o que denotava que era pequeno, de plástico preto, sem janelas, quente e muito sufocante.

O quarto, se é que o pequeno cômodo podia ser mesmo chamado assim, era sempre bastante escuro, em qualquer hora do dia. O plástico preto não permitia entrar quase nenhuma claridade, então, quando Porãsy acordou, ela não sabia dizer que horas eram. O local era também asfixiante e isso logo provocou uma agonia na menina, que se levantou no mesmo instante.

Assim que seus olhos se acostumaram com a pouca claridade, ela percebeu que a irmã mais nova não estava mais na cama que as duas dividiam, tampouco Yvy Rajy, a mais velha, estava na outra cama que havia no quarto. As duas já tinham levantado e saído, e Porãsy nem percebera.

Um incômodo no estômago avisou-a de que estava com fome. Isso a fez deduzir que não deveria ser muito cedo. Retirou a camiseta velha que usava para dormir, vestiu um short e uma outra camiseta, não tão melhores assim, e saiu em direção à cozinha, que também era o quarto dos pais. Este outro cômodo seria quase tão escuro quanto o quarto das meninas, não fosse pela pequena abertura da porta, que dava para o lado de fora, e por onde a claridade entrava com força, subjugando a escuridão.

Porãsy atravessou esse segundo cômodo e saiu. O sol forte queimou seus olhos, fazendo-a piscar muitas vezes e quase lacrimejar. Ela percebeu uma agitação na pequena cobertura de capim, que ficava logo após a porta, e viu que seus pais e irmãs tomavam café.

— Fala, mana! Até que enfim, você acordou. — A irmã mais velha estava sentada em uma cadeira. Comia um pedaço de pão com manteiga e tomava chá.

Ela estava para completar treze anos e, quando a mãe comentou sobre isso, houve um murmurinho na comunidade. É que, na etnia a qual a garota pertencia, essa idade deveria ser celebrada com uma festa especial, ainda mais que todos a conheciam e sabiam que esse era o momento ideal para apresentá-la como moça. Queriam uma comemoração como deveria ser a passagem ritual e iniciação na vida adulta, no entanto, quando os pais e avós, sentados em troncos, raízes de árvores ou bancos rústicos, se reuniam para discutir o assunto, bastava olhar em volta para terem certeza de que a comemoração da forma desejada e sonhada seria muito difícil de ser realizada.

A aldeia, que não passava de um aglomerado paupérrimo de barracos de lona preta, como o da menina, ficava na beira da rodovia, esperando a Presidência da República fazer a homologação e demarcação das terras para que eles pudessem, por fim, estar e usufruir do seu lugar de origem: a terra sagrada do seu povo, lugar onde os cordões umbilicais das crianças tinham sido plantados ao nascimento, e onde os idosos haviam sido enterrados. No entanto, a espera pela ação do governo federal se prolongava por mais tempo que os quase treze anos da menina.

Porãsy era uma menina linda, alegre, cheia de vida. Morena, com cabelos negros e lisos que lhe chegavam às costas, e olhos pretos brilhantes. Ainda no início da adolescência, já apresentava um corpo bem formado e delineado. Alguns diriam, particularmente as meninas Karaí (1), que ela estava com o peso um pouco acima do ideal para o seu tamanho, mas isso não era bem a verdade; ela só não era tão magra como as modelos que desfilavam nas passarelas, no entanto, seu corpo era perfeito para o padrão da etnia.

Em outros tempos, já seria considerada apta para se casar, mas isso mudara há muito, entre seu povo. Hoje, o que se espera dela e de outras meninas como ela é que estudem e se formem em uma faculdade. Primeiro conseguissem uma forma de sustento e, só então, o casamento.

Ela era uma garota comum em seu meio. Como toda menina de sua idade, ia à escola — estava no sétimo ano —, gostava de ouvir música, de bater papo pelo WhatsApp, acessar à internet. Também prestava atenção nos garotos lindos e evitava aqueles que considerava feios e chatos. Sonhava com o garoto ideal, um príncipe encantado moderno, mas ainda não notava aqueles à sua volta, que sempre se encantavam com sua beleza e jeito de ser.

— Eu a namoraria com certeza — era um comentário repetitivo entre os garotos, fossem da sua etnia ou não, quando o assunto era ela. — Claro, se ela ligasse para mim.

Mas Porãsy não sabia de nada disso. Ria muito, se divertia com suas irmãs e amigos, brincava, jogava vôlei e futebol, mas não tinha ideia do encanto que sua presença emitia. Ela era uma adolescente generosa, amiga fiel e boa companheira, mas desconhecia a magia que emanava de seu ser, onde quer que estivesse.

— Que horas são? — Porãsy perguntou à irmã, pegando uma xícara e se servindo de chá. — Por que você não me acordou?

Sua principal amiga e companheira confidente, sua irmã Yvy Rajy, tinha quase quinze anos. Como ela, Yvy era morena, cabelos compridos, um pouco mais baixa que Porãsy, ainda que mais velha. Na verdade, ela era bem mais baixa, o que a deixava com uma pontinha de ciúme da irmã, mas um ciúme bem pequenininho. Quase não se podia classificar aquele sentimento como sendo ciúme. Era, melhor dizendo, uma grande admiração; uma verdadeira exaltação. 

Desde que a irmã nascera, Yvy sentia a necessidade de protegê-la, de estar por perto para livrá-la de todos os males do mundo. Esse sentimento e desejo de amparo não estava presente somente naquela que era a principal companheira da menina. Não se sabe o porquê, mas muitos, além da irmã e pais, dariam a vida por ela, se isso fosse necessário algum dia, mas Porãsy não tinha consciência disso, também.

só te enchendo. Acabei de levantar também. — Verificou as horas no celular para responder à irmã. — São nove e trinta e cinco.

— Eita! Já tarde mesmo! — Porãsy se sentou. — Mas é sábado; não tem aula, então tá de boa.



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Nota de rodapé 

1- Karaí – nome dado àqueles que não são indígenas

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora