5. Dias sombrios (parte 2)

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Dias depois, ao chegarem da escola, as duas irmãs viram o avô sozinho, sentado debaixo da mesma árvore de sempre. Ele estava quieto, com os olhos perdidos no horizonte.

Porãsy passou direto, entrou no barraco, pendurou em um pau, que ajudava a sustentar a lona preta que cobria tudo, sua mochila azul, uma dessas cedidas pela prefeitura para cada aluno da rede pública, e saiu novamente.

Estava com fome e foi para a beira do fogo ver o que a mãe estava preparando. A comida estava pronta. Porãsy se serviu e em seguida foi para perto de seu avô, e se sentou ali. Sua mãe trouxe um prato para o avô. Foi então que a menina falou para ele:

— Eu gosto das histórias, vovô.

Ela sentiu que tinha de falar aquilo para ele, pois estava pesando o seu coração. O avô a olhou por alguns instantes. Porãsy achou que ele estivesse ponderando sobre o que ela falava.

— Das histórias dos monstros, dos filhos da Kerana.

Ele abaixou o olhar para comida, mastigou calado e Porãsy tentou imaginar no que pensava.

— A questão não é gostar ou não gostar. É preciso mais do que isso. Você precisa acreditar, minha neta — disse por fim. — Você é uma Porãsy: a mãe da beleza. Não pode temê-los, filha. Terá de enfrentá-los e derrotá-los.

Mais uma vez, ela ficou pensando no que ele disse. Será que ele estava dizendo que ela deveria enfrentar seus medos? Era isso? Seria isso que ela teria que fazer? Enfrentar e derrotar os seus medos?

Realmente, a menina ficara com muito medo. Só saía à noite, para qualquer parte, ainda que para barracos próximos, se tivesse alguém com ela. Esse alguém era, quase sempre, sua irmã. Mas, se ela não acreditava nas histórias, por que tinha medo? Como ter medo de algo em que você não acredita? E como ela poderia enfrentar seus tantos medos, se tinha medo deles? Parecia uma contradição.

— Mas eu acredito, vô. Acredito mesmo no que o senhor disse — afirmou, tentando transparecer uma convicção que ela sabia não ter. — E não vou ter mais medo, você vai ver.

Ele colocou mais uma colherada de comida na boca. O avô, quando em casa, comia só com colher. Todos preferiam comer com colher, nesses momentos. Na verdade, não dava muito certo usar garfo e faca quando se sentava em raízes ou em bancos debaixo das árvores para comer.

Então ele ficou quieto de novo, mastigando devagar. Porãsy olhou os pratos de comida: arroz, mandioca e um ensopado de carne de frango. Não tinha nenhuma verdura ou salada. Aliás, era muito raro eles comerem salada.

Foi então que ela percebeu que tinha algo mais que perturbava seu avô. Ele estava muito quieto. Mais quieto que o normal.

— O que foi, vô? — arriscou perguntar — O que está perturbando o senhor?

Ele terminou de mastigar, ainda devagar, engoliu, parou a mão com a colher encostada no prato e, só depois de instantes, falou:

— Saiu uma outra liminar de despejo para os parentes da Terra Indígena Taquara.

Então era isso. Porãsy entendeu, afinal. O que mais perturbava seus pais e avô, bem como aos mais idosos da aldeia, eram essas benditas — ou seriam malditas? — liminares de despejo.

Essas coisas de liminares de despejos funcionavam mais ou menos assim: antropólogos, arqueólogos e diversos cientistas dessas áreas, escolhidos e determinados por órgãos do governo, faziam a pesquisa e forneciam o laudo antropológico que confirmava que a terra era indígena. Para isso, realizavam entrevistas, enumeravam e percorriam os lugares citados pelos indígenas, faziam escavações e, então, comparavam os depoimentos orais e relatos obtidos com subsídios geológicos, arqueológicos, in loco, cotejando com documentos históricos escritos e visuais para, assim, adquirir-se um resultado. Então, comparando todas as informações e dados recolhidos, emitia-se um laudo.

A partir daí, tornava-se obrigação do governo federal continuar o processo, até que os fazendeiros e outros ocupantes das terras em questão fossem remunerados pelos bens que "perderiam" ao devolver as terras para os indígenas e as desocupassem. Só então os indígenas voltariam aos seus territórios tradicionais.

O problema é que, após o laudo antropológico, os processos sempre emperravam. O Governo Federal não cumpria fácil a sua parte, efetivando a demarcação, remuneração e retirada dos não-indígenas das terras indígenas.

As consequências eram que, enquanto isso, os indígenas não tinham onde morar e ficar, acabavam se cansando, após dezenas de anos acampados em beiras de rodovia, e decidiam fazer as retomadas das terras por si mesmos.

A Terra Indígena de Taquara, assim como a Aldeia Apyka'i, onde Porãsy morava com sua família, estavam nessa situação.

Daí, quando os indígenas reocupavam a terra, que era sua por direito e já tinha um laudo comprovando isso, os grandes latifundiários, ditos "donos" dessas terras, entravam com processos de reintegração de posse. Esses processos sempre resultavam na expulsão e retirada das comunidades indígenas do local e o fazendeiro voltava a retomar as terras.

Isso continuava por anos e anos. Os moradores de Apyka'i já haviam passado por isso várias vezes. O problema é que, muitas vezes, ocorriam mortes, nesse processo de idas e vindas, quase sempre de indígenas efetuadas por jagunços contratados por fazendeiros.

E, naquele dia, era isso que deixava Tupã'y tão triste. Ele, como os pais de Porãsy, sempre sofria muito com isso. 


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde histórias criam vida. Descubra agora