O tempo prosseguiu como fumaça diante de Pedro: mais de quatro anos se passou e o que aconteceu com seu avô virou lenda. Muitas histórias foram contadas a respeito, mas Thomaz Laranjeiras não falava nada. Nem desmentia, nem confirmava, ele entendeu que era mais prudente ficar quieto. Primeiro porque não entendia o que tinha vivenciado e segundo porque a fama de alguém que escapava dos espíritos do mal da floresta de certa forma era boa para os seus negócios. Com o tempo chegou a esquecer o que aconteceu naquele dia. Ficou na memória somente como um pesadelo.
Ao fim de um dia de trabalho pesado, Thomaz na ânsia de mais conquistas, adentrou o solo que jurou nunca mais pisar. Ao abrir uma picada na mata, sentiu uma vertigem. Recostou numa árvore e respirou fundo. Imagens invadiram sua mente. Sentiu um medo inexplicável e pediu aos seus empregados que terminassem de demarcar a nova terra e voltassem para casa.
Perto das sete horas da noite, ele voltou acompanhado por seus empregados. Quando estava se aproximando de casa, sua empregada, uma cabocla idosa, abriu a porta correndo:
— Graças a Deus o senhor chegou — ela disse agitada. — É a patroa... seu filho está demorando para nascer, a parteira disse que ele está atravessado e estão correndo risco de vida.
Pedro, em sua visão, viu o avô empalidecer. Thomaz correu para dentro de sua casa, mas saiu em seguida com as mãos na cabeça, desesperado.
Logo atrás veio a parteira, limpando suas mãos ensanguentadas numa toalha.
— Senhor! Não podemos fazer mais nada. Ela está entregue à Providência Divina.
— Não! Você tem que salvá-la! Não há médicos por perto e nem mesmo cidades. Não posso perder minha família. Deus! Por favor, não me tire os dois ao mesmo tempo, é demais para mim!
Os empregados tentavam acalmá-lo. Fizeram-no se sentar num banco improvisado, trouxeram água. Algumas das esposas de seus homens tentavam consolá-lo. Mas não havia consolo. Ele não se conformava.
De repente, um burburinho de desolação varreu o assentamento. A mãe de seu capataz, uma senhora de seus oitenta anos, chegou. Ela passou entre as pessoas espalhadas pelo pátio sem sequer cumprimentá-las. Como se não houvesse ninguém ali. Se aproximou de Thomaz e falou:
— Sei que sua situação é difícil, mas meus olhos já viram muita coisa nessa minha vida. Existe na aldeia próxima uma velha curandeira e parteira, que tem as mãos abençoadas. Se estiver com dúvidas e medo, não tema, vá e chama ela, a esperança é sempre a última que morre.
Ele olhou para a mulher com o olhar perdido. Não entendia o que ela estava falando. Seu estado de alma não o permitia raciocinar.
Com calma ela voltou a explicar para ele o que tinha falado. E então ele entendeu. Seu coração se agitou. A ânsia de que a esposa e o filho sobrevivessem se apoderou dele com força.
Tremendo perguntou o nome e como encontrar a tal mulher. Chamou um companheiro e saiu correndo noite adentro. Outros homens os acompanharam. Eles não confiavam nos índios.
***
Os olhos da velha se dobraram para trás, o branco da órbita olhando distante. Ela estava em transe.
Thomaz sentiu medo, mas encarou aqueles olhos. Sentia o vazio perceber sua alma.
Da boca enrugada saíam palavras estranhas. A mãe do capataz se aproximou e traduziu o que a curandeira falava:
— Seus passos transitaram numa proibição. Você quebrou um pacto de sangue e morte. Todos sabem que esses contratos só são dissolvidos com a paga final! — a mulher apertou o chale em volta dos ombros, desconfortável em transmitir maus agouros.
O avô de Pedro se sentia confuso, mas quando ia perguntar algo, suas cicatrizes das costas queimaram. De dentro da casa os gritos de sua esposa ecoaram altos, ele sabia que ela estava perdendo as forças.
Aquele não era momento de duvidar. Não havia outra opção, não tinha mais onde recorrer. Mesmo descrente, ele perguntou:
— O ... que posso fazer? Salva eles, por favor!
Novamente o estranho dialeto ecoou, como o roçar do vento. E a velha traduziu mais uma vez:
— A Deusa Arasy vai salvar a mãe e o menino, mas sempre que um pacto é pago com outro, o preço um dia virá, basta a Deusa Arasy assim querer. O senhor concorda com isso?
Pedro, absorto no que parecia um sonho, vê o homem afirmar com a cabeça que sim. Não tinha escolha.
— Pois bem! Precisamos realizar um ritual rápido. Sua família a partir de agora terá a marca e a proteção da Deusa Arasy, a senhora do firmamento.
***
O ritual foi iniciado imediatamente. A idosa se adornou com um cocar de penas coloridas e colares. Se pintou com urucum. Pegou uma taquara que trouxera consigo e se dirigiu ao quarto da parturiente que já se encontrava em estado de exaustão.
Ela não se importou com as outras mulheres que ali estavam. Não olhou o estado dos lençóis na cama. Não se deu conta das vasilhas com água, ou os panos e toalhas ajeitados perto da cama.
Somente começou uma espécie de dança e canto ritual. Batia a taquara no chão assinalando o ritmo. Os seus pés movendo-se ao ritmo do som produzido.
O canto que saía de sua boca era repetitivo, mas ainda assim era intenso e parecia triste. Os enfeites balançavam em seu peito. Ela mantinha a cabeça baixa.
Ao terminar, finalmente ela olhou para a mulher na cama. Se aproximou e tocou na sua barriga. Começou um novo canto. Antes de terminar a parteira que se apressou em receber a criança que enfim nasceu. O som forte do choro do recém-nascido ecoou na noite.
Risos e congratulações ressoaram, a mãe e o menino estavam bem.
***
A vida passou diante de Pedro.
O bebê cresceu, se tornou um menino, depois rapaz e logo estava se casando e tendo um filho. E então ele viu o seu próprio nascimento.
Pedro entendeu a visão, mas não queria acreditar. Lembrou da história que seu filho lhe contou.
Nesse momento ele foi sugado até sua casa. Sua respiração estava acelerada. Era como se ele tivesse caído de muito alto, seu coração batia agitado.
Pedro abriu lentamente os olhos, sua bebida estava derramada no chão. Aos poucos ele se recompôs, ao se levantar, escutou que sua família chegava.
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(continua)
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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígena
FantasyHouve um tempo além do tempo, onde a Criação havia começado e os deuses andavam livremente na terra. Nessa era existiu Kerana e seus sete filhos monstruosos e amaldiçoados. E existiu Porãsy, a garota de quem as profecias falam... Mas, com o passar...