Enfim, chegou o dia do casamento. O Sol já sumira no horizonte havia algum tempo, quando Porãsy saiu de seu aposento, no interior da caverna, onde ficara confinada o dia todo. Com passos leves, dirigiu-se à cavidade mais externa, onde os filhos de Tau e Kerana se encontravam. Todos os irmãos estavam reunidos mais uma vez, e Porãsy junto deles...
Assim que adentrou o salão, todos os olhares se viraram para ela. Estava linda. O nome lhe fazia jus, pois era totalmente merecedora de ser chamada de "A mãe da beleza". A deusa da beleza, naquele momento, se manifestava nela em toda a sua magnitude.
Porãsy usava o vestido e enfeites que Kurupi lhe trouxera. Os cabelos negros e longos, enfeitados com as flores amarelas da palmeira pindó, estavam soltos e se moviam suavemente, conforme a brisa exterior batia neles. Ela trazia nas mãos um buquê de flores da mesma palmeira. Os pés descalços pareciam deslizar, tamanha a leveza de seus passos.
Kurupi a olhou encantado. Ele vivera por várias gerações e sempre se acercara de lindas garotas. Sendo o deus da sensualidade já seduzira e conquistara um número sem fim de mulheres. Esta era a sua sina. No entanto, dentre todas as jovens que conhecera, sempre era Porãsy que o deslumbrava. Sua tia, a mãe de toda beleza, estava novamente ali: a mais bela de todas.
Ao colocar os olhos em Porãsy, Monhãi ficou maravilhado. Ela estava linda, maravilhosa! Apaixonou-se por ela desde a primeira vez em que a vira, mas, naquele momento, a beleza de Porãsy era cheia de magia; enfeitiçava. A enorme serpente, com suas antenas que difundiam as cores do arco-íris, se aproximou da adolescente e a cercou com seu corpo, erguendo a cabeça à altura dela. Porãsy sorriu e olhou Monhãi com ternura. O arco-íris que se formava das antenas resplandecia e iluminou a noite suavemente.
Aô-Aô, o monstro que tinha a forma de um porco selvagem e que se alimentava de carne humana, também viu Porãsy quando ela entrou na concavidade onde se encontravam. Ao notá-la, ergueu a cabeça no ar e seu nariz aspirou os cheiros do ambiente, então seu corpo se agitou, seu pelo ficou eriçado e sua boca e garganta produziram terríveis sons, como o ronco de uma manada de porcos selvagens. Ele começou a raspar o chão com uma de suas patas.
Monhãi, ao perceber a reação do irmão selvagem, se aproximou ainda mais de Porãsy, a cercando, na intenção de protegê-la do iminente ataque. Kurupi, Teju Jagua e Jasy Jaterê fizeram, com seus corpos, uma cerca bizarra entre Aô-Aô e a jovem noiva.
— Calma, mano! Calma! — Kurupi estava de frente a Aô-Aô e tentava refreá-lo. Os três irmãos empurraram Aô-Aô para uma distância maior de Porãsy.
— Você precisa se controlar. É só por mais um pouco de tempo. Depois tudo acabará e você ficará livre, como todos nós — disse uma das cabeças de Teju Jagua.
Estranhamente, a menina não sentiu medo. Não teve medo de Monhãi e nem de nenhum dos outros irmãos legendários. Nos dias em que permanecera na caverna, descobrira que gostava de estar entre eles, de conversar com eles, de descobrir deles coisas sobre os tempos primeiros, em que os deuses viviam na terra e se relacionavam com suas criaturas de forma direta. Porãsy descobrira que podia, sim, conviver com os monstros. Até Aô-Aô a respeitava, mantendo-se longe dela.
***
Durante a cerimônia do excêntrico casamento, todos estavam felizes. Porãsy sentia uma esperança no ar. Os irmãos bebiam xixa — a bebida que a etnia de Porãsy usava nas festas —, o que os deixavam leves e livres. Eles riam e conversavam, descontraídos.
Era um grupo muito estranho, aquele. Nos corpos, terríveis monstros; na alma, bons companheiros. Estavam todos eles renovados por uma promessa, uma esperança de quebra de maldição que Porãsy não conhecia, mas da qual sabia fazer parte.
***
Fora da gruta, a noite estava fechada. Jasy, a lua, era o grande deus ausente. Thomas e os homens de Pirakuá se aproximavam da colina Jaguaru em silêncio. A armadilha estava preparada e o fim estava próximo.
No interior da gruta, a festa grotesca prosseguia ao brilho da luz de tochas. Conforme o tempo decorria, e, com a ação da xixa, a bebida que ingeriam, os monstros tornavam-se grosseiros e terríveis, no meio da escuridão, mas Porãsy fora avisada desse momento por Monhãi e Kurupi. Ela sabia que o lado animal dos sete irmãos os dominaria quando bebessem e que nada os deteria. Era isso que acontecia com os humanos quando bebiam também: perdiam as limitações, soltavam seu animal interior. Por isso mesmo, usava a roupa de fios de pindó e os colares, pulseiras e tornozeleiras feitos a partir da planta. Também se untara com o óleo do fruto da palmeira.
Ela aguardava o momento de agir. Não permitiria que as pessoas de sua aldeia destruíssem os monstros que aprendera a respeitar e — por que não? — a amar. Seres de quem se tornou amiga. Quer dizer... quase todos. Achava que nunca poderia ser amiga de Aô-Aô.
Mais uma vez, olhou para os sete irmãos. Observou a embriaguez deles, sabendo que os parentes e amigos da Aldeia de Pirakuá aguardavam um sinal dela para agirem. Um sinal que ela nunca daria. Porque antes disso, ela fugiria para se encontrar com eles e evitaria o massacre. Estava tudo certo e programado em sua mente.
As horas se passaram e Porãsy começou a ficar ansiosa, aguardando o momento em que pudesse agir. Os irmãos estavam cada vez mais bêbados e agitados, e ela acreditava que, do lado de fora da caverna, as coisas também estivessem se desenrolando conforme o combinado com Thomas. Precisava sair dali e ir de encontro ao primo, isso era certo. No entanto, Monhãi estava sempre ao seu lado e isso dificultava sua ação. Então houve um momento em que ele se afastou e foi para o outro lado do salão, até onde a xixa estava, disposta em uma vasilha de tronco escavado, e de onde todos bebiam. Ela o observou atenta e, quando ele se debruçou sobre o cocho para beber, ela acreditou que era o momento certo de escapar. Sabia que não teria outra oportunidade como aquela.
A entrada da caverna estava perto. Atenta e com cuidado Porãsy caminhou entre os monstros até à abertura. Tentou aparentar naturalidade, no entanto seu coração estava acelerado. Alcançou a porta e estava prestes a sair, mas, do lado de fora, havia um grupo de pessoas que não era o que ela esperava encontrar. Não viu nenhum rosto conhecido ali. Todos lhe eram estranhos.
As pessoas que se encontravam do lado de fora, vendo seu movimento e pensando ser uma das criaturas tentando escapar, se aproximaram com paus e porretes e a impeliram de volta à gruta. Em seguida, empurraram uma grande pedra, que cobriu quase toda a entrada.
Monhãi percebeu quando Porãsy foi empurrada de volta. Entendeu que ela estava fugindo dele. Indo embora para não se casar. Sentiu-se ferido na alma. Tudo acontecia, de novo, da mesma forma como no início. Mais uma vez era rejeitado. O sentimento de tristeza e vergonha o dominou completamente. Mas, no que dependesse dele, ela não escaparia.
Como um raio, saiu das sombras e envolveu o corpo frágil da garota com seu corpo de serpente. Moveu-se rapidamente e a jogou de volta ao fundo da caverna. Suas mandíbulas se abriram, para lançar um grito aterrorizante.
— Traição! Ela está nos traindo! — O grito de fúria de Monhãi repercutiu por toda a caverna e até do lado de fora.
— Não! — gritou Porãsy, mas era tarde demais.
Os irmãos monstros viram a pedra bloqueando a entrada e perceberam que estavam presos. Tentaram, em vão, escapar. Os urros de dentro da caverna se tornaram espantosos, assustadores.
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(continua)
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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígena
FantasyHouve um tempo além do tempo, onde a Criação havia começado e os deuses andavam livremente na terra. Nessa era existiu Kerana e seus sete filhos monstruosos e amaldiçoados. E existiu Porãsy, a garota de quem as profecias falam... Mas, com o passar...