Deir ez-Zor, 20 de agosto de 2007.
Sahoun havia visto dezenas de mulheres jovens desacompanhadas na cidade, possivelmente por terem perdido seus maridos nos confrontos enfrentados pelo país entre o final de 1990 até 2004. Embora Aisha tivesse tido um destino semelhante, era notável que ainda não houvesse encontrado um novo parceiro. Era educada, suave, encantadora, independente e, por que não dizer, atraente. A amizade deles respeitava a tradição, mas evoluía a cada dia. Ele não desejava parecer apressado e nem interessado demais no seu objetivo principal. Contudo, mensagens recentes, recebidas como SMS cifradas no celular do banco sob o caramanchão ordenavam para ele apressar o aliciamento.
Sob a temperatura de quase 40oC, a beira do rio continuava a ser o local mais ameno aquela hora do dia. Tinham cerca de duas horas para passear, antes que ela precisasse rumar para Al-Kibar. Ele questionou-a sobre o que fazia exatamente.
- Minha pós-graduação foi em Toxicologia Industrial. Coleto amostras para análises em laboratório, desde resíduos e efluentes até sangue dos funcionários. Há poucos médicos e enfermeiras. Eu ajudo no que posso e atuo em várias frentes na empresa.
- Que interessante. Qual a razão para coletar estas amostras? Perigo biológico?
Ela estranhou a pergunta. Os residentes de Deir ez-Zor eram curiosos como quaisquer outras pessoas, mas costumavam ser indiferentes a Al-Kibar, um local distante e que quase não fazia parte do cotidiano da cidade. Reagiu um pouco contrafeita:
- Quer saber demais!...- respondeu num gracejo. - Já lhe falei que não posso ter esse tipo de diálogo com "estranhos"...- Mas Sahoun insistiu.
- Não entendo por que tantos segredos naquele prédio. Fazem alguma coisa proibida por lá? Você se sente bem num ambiente assim? Não tem medo deles? - retorquiu Sahoun, dando de ombros, num tom simplório. Era o papel que melhor sabia representar e que algumas mulheres adoravam.
Aisha encarou-o seriamente, mas depois sorriu. Não resistiu à careta do amigo.
- Há! Você parece que lê minha mente. Acho que fazem alguma coisa fora do normal, sim. Dizem que é uma usina de energia. Uma empresa importante para o país. Bem, se você prometer não contar para mais alguém, eu lhe digo: acho que a atividade é secreta. Muitos soldados em volta. Muitos cientistas vêm de Damasco e de outros lugares. Há sensores espalhados pelos corredores...Vigiam quase tudo.
- Toxicologia Industrial inclui análise de resíduos radioativos? Sensores de quê? –quis saber..
- Sim, de radiação ionizante - ela respondeu num suspiro. - Monitoramos as contagens de células sanguíneas de todos os trabalhadores. Em geral, estão normais.
- Se for radiação, acho que é secreto. Você não tem vontade de descobrir?
- Teria, mas eles me atemorizam. Estão alertas e eu preciso daquele emprego!
Ele tomou-lhe a mão como ela gostava e confessou-lhe, ternamente:
- Não gostaria de vê-la em maus lençóis por minha causa...- então, desviou um pouco do assunto. - Você está feliz no trabalho?
- Não me dou a esse luxo. Mas se eu pudesse, trabalharia em outro local, num grande laboratório ou numa indústria com bons recursos. Por quê?
- Um lugar assim como essa "usina", toda vigiada, pode não ser o melhor para você para o resto da vida. Eu...fiquei curioso com o que ouvi. Podemos descobrir mais a respeito. O que acha?
- Por quê? - ela o interpelou.
- Se for algo muito irregular, talvez você queira pular fora de lá. Posso tentar conseguir-lhe um emprego decente. Tenho amigos em outras cidades...
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O Gato do Deserto
Historical FictionEste é um romance de ficção inspirado em fatos reais. Em 6 de setembro de 2007, a Força Aérea Israelense bombardeou cinematograficamente as instalações de um provável reator nuclear clandestino em pleno deserto sírio, suspeito de ter sido fin...