02 - Cachorro estúpido.

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🖇️ | Boa leitura!

V I N N I E

Aquela é a parte mais difícil para ela e eu sei disso. Minha mãe odeia a quimioterapia e os efeitos colaterais que o procedimento causa em seu corpo. Ela costumava dizer que era melhor morrer em paz do que morrer de forma desagradável, mas parou com essa fala quando eu cheguei ao meu limite e confessei que doía em mim quando ela demonstrava que não queria lutar mais. Eu ainda não consigo parar de lutar e gostaria que ela ao menos tivesse a metade da esperança que ainda tenho.

São quatro anos de luta contra o câncer de mama. Eu tinha acabado de conseguir meu primeiro emprego num escritório de advocacia quando ela me deu a infeliz notícia de que tinha um tumor em estado avançado. Como ela já não podia mais trabalhar, eu tive que começar a arcar com tudo. Vendi meu apartamento apenas três meses depois de adquiri-lo e me mudei novamente para a casa da minha mãe sem previsão de sair dessa vez. Cuidei dela de perto por três anos, mas moro sozinho desde o último ano quando ela piorou o seu estado e precisou ser internada. E eu sei que ela odeia morar no hospital tanto quanto odeia os procedimentos pelos quais precisa passar.

Todos os dias, eu tento ter um olhar mais positivo para continuar de pé. Adotei medidas para me livrar do estresse como meditação e o uso contínuo de incensos. Eu também me interessei pelos preceitos budistas sobre o valor da vida e a pacificação, além de tocar em uma banda com meus amigos semanalmente em uma casa de shows pequena. Se não tivesse agido rápido e procurado medidas para me manter são, provavelmente eu seria a pessoa mais infeliz do mundo agora. Não que eu não tenha os meus momentos de negatividade, não dá para ser positivo o tempo todo. Mas ao menos eles não ditam quem eu sou ou o que devo fazer.

— E como está o Merci? — ela pergunta assim que a ajudo a se acomodar em sua cama. Sempre cansada após a químio, ela não consegue fazer nada além de ficar deitada.

— Ainda me dando trabalho. — brinco sentando numa cadeira ao lado da cama. — E eu ainda insisto que mude o nome dele.

— Por que? Merci é a minha palavra favorita.

— Sério? "Obrigado"? — fiz uma careta.

— Uma palavra educada para um cãozinho educado. — sorriu fraco, seus olhos quase se fechando.

— Bom, acho que ele só faz jus ao próprio nome quando você está perto. Ou talvez ele só me odeie e esteja tentando dizer isso fazendo xixi nos meus sapatos sempre que eu os deixo perto da porta.

— Não os deixe perto da porta. — disse como se essa fosse a solução. — C'est un bon garçon. (Ele é um bom garoto). — murmura sonolenta, pouco a pouco se entregando ao sono.

Ela costuma falar francês quando não está em sua consciência total ou quando está com raiva, comportamento esse que eu também tenho. O bom é que eu posso xingar clientes burros ou chefes irritantes sem que eles se deem conta do que eu estou dizendo. Ter duas línguas no vocabulário possui vantagens interessantes.

Sabendo que a minha mãe não vai acordar nas próximas horas, deixo um beijo em sua testa e me despeço sem que ela possa me ouvir. Volto para casa com o intuito de me enfiar no trabalho pelo resto da tarde, mas tenho essa ideia frustrada quando percebo que Merci não está em nenhum lugar. Minha mãe ficou brava quando eu disse que construí uma casa de cachorro para ele no quintal e me fez jurar que só o deixaria do lado de fora de dia, quando eu não estivesse em casa. Sempre achei que cães devem ser criados no quintal, mesmo que sejam de raça, o que era o caso de Merci, um Yorkshire com a energia de uma usina nuclear.

Beautiful Girl ᵛᶦⁿⁿᶦᵉ ʰᵃᶜᵏᵉʳOnde histórias criam vida. Descubra agora