Adam

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Hospital Geral de Trairi, Ceará

08 de fevereiro

10h51min

Dr. Estevão Trabulsi, clínico geral, escutou o grito histérico de uma mulher que ecoou perto da ala de urgência. Uma enfermeira idosa o chamou às pressas, alegando que não falava inglês e que uma "gringa" carregava nos braços uma criança desacordada.

O médico passou pelo corredor observando poucos feridos: um pescador com a mão ensanguentada perfurada por um anzol; um adolescente com a sola do pé lesionada por espinhos de baiacu, que tivera o azar de encontrar na praia; uma mulher se queixando de fortes dores no peito depois de engolir água do mar. Nada incomum para ele.

Ao entrar na ala de emergência, contudo, teve uma impressão de morte ao ver no leito um menininho pálido carregando um semblante extenuado. Ao lado, uma mulher chorava inconsolável com um celular na mão, a voz alterada ao falar em inglês com alguém do outro lado da linha. A mulher se sentou numa cadeira de plástico sujo, sem cerimônias.

O Dr. Estevão levantou o lençol que cobria o peito da criança e ficou perturbado com o que viu. Uma extensa queimadura purulenta envolvia o braço direito, subindo até o cotovelo do menino. Era profunda e tinha um odor acre. A pulsação da criança estava baixa. À primeira vista, o quadro era estável, mas precisava de um eletrocardiograma mais moderno para analisar os batimentos cardíacos. A maioria dos equipamentos das unidades de pronto atendimento era velha, sucateada. Mesmo assim, podia verificar os batimentos com o que tinha. O médico tirou uma pequena lanterna do jaleco e moveu as pálpebras do menino.

− Midríase − disse em voz alta, ao perceber o enfermeiro se aproximar. − As pupilas não se contraem com a luz. Está inconsciente. Espero que não seja indício de hipóxia cerebral por envenenamento. − Observou mais de perto o braço. A necrose havia atingido os vasos sanguíneos. O médico se afastou, intrigado, encarando o enfermeiro. − Algum tipo de líquido caiu na pele dele?

− Não que eu saiba – o enfermeiro examinou o ferimento.

− Acidente com ácido, fluidos alcalinos ou fenol? – o médico perguntou.

− Não sabemos. Entendi pouco do que a mulher dizia. Deve ser americana. Não falo inglês fluente, mas suponho que seja a mãe do menino. Ela o trouxe no colo. Estava em choque quando chegou.

O médico voltou a observar o braço.

− Há equimoses e eritemas ao redor da pele. No centro da necrose, uma pequena hemorragia. Está vendo? – o médico apontou. – Vários tipos de cobras têm peçonhas com efeito similar. Mas nunca vi nada igual. A extensão da necrose é enorme.

O enfermeiro desviou o olhar da lesão no braço da criança. Dr. Estevão, incomodado, fez o mesmo; a necrose tinha uma aparência horrível.

− Então acredita que alguma peçonha pode ter causado isto? – o enfermeiro perguntou.

− Como disse, nunca vi nada igual. Por que perguntou?

− Dois residentes ouviram a mulher descrever uma coisa na praia semelhante a uma medusa. Ao que parece, ela estava com os filhos. Estão vestidos com roupas de banho.

− Quem os trouxe aqui? – o médico quis saber.

− Não tenho certeza. Posso pedir mais informações.

− Não sei bem que antídotos ministrar nesta criança. Ela terá que ser removida para a capital. Mesmo assim, traga um catártico. Quero 1000 ml. Traga também ampolas de dosagem padrão de prometazina ou difenidramina. Antes da soroterapia quero administrar corticosteroides. Prepare o material depressa. A pulsação está baixa demais. Depois fazemos a limpeza do ferimento.

O enfermeiro saiu às pressas. O médico pensou na relação entre o estado inconsciente do menino e a necrose no braço, certo de que algum tipo de toxina entrou na corrente sanguínea e...

Saltou para trás quando o bipe do eletrocardiograma soou. A mãe do menino gritou, agarrando-se ao filho.

− Tirem ela daqui! − Dr. Estevão ordenou.

Dois enfermeiros entraram correndo pela porta. O monitor cardíaco traçava uma linha contínua, reta; o coração da criança havia parado.

− É um PCR! − Estevão vozeou, começando a massagem cardíaca. Um dos homens o ajudou enquanto o outro arrastava a mulher porta afora − Não está respirando. Quero uma insuflação. Onde está o desfibrilador?

− Foi enviado à manutenção − o rapaz informou.

− Cristo! − Estevão trovejou. − Massagem cardíaca!

O enfermeiro continuou a massagem cardíaca, enquanto o médico inseria ar nos pulmões do menino.

− Droga! Acho que fraturei uma costela dele − o enfermeiro disse.

− Use menos força.

− Não sei se posso...

− Até que reaja! Continue!

O enfermeiro prosseguiu. De repente, encarou o médico, atônito. − Droga! − exclamou.

− O que foi?

− Tem alguma coisa errada, doutor – ele disse, controlando as mãos. – Os ossos estão se partindo. Acho que causei uma luxação no costoesternal.

− Saia daí! − Estevão gritou com tanta força que uma veia do pescoço saltou.

O médico tomou o lugar do enfermeiro. Ao colocar as mãos na altura do diafragma do menino, ficou assombrado. Os ossos pareciam moles.

− Não está reagindo! − o enfermeiro gritou.

O bipe soava contínuo. Estevão foi até o carrinho de medicações no canto da sala. Ele suava, o rosto encarnado, a testa franzida, os lábios crispados. Abriu o carrinho com força. Leu o nome nas ampolas: noradrenalina, adrenalina, atropina, dobutamina, dopamina. Pegou um frasco de adrenalina a 5% e usou uma seringa para puxar o líquido.

Correu até a criança e enfiou a agulha em seu peito.

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