Um Ser Inusitado

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Reserva Marinha de Noronha

10 de fevereiro

06h47min

Victor Lopes acelerou o bug e dirigiu pela trilha enlameada da mata que levava à Praia do Leão. Ao lado da esposa, assobiava Samba da Benção, de Vinícius de Moraes, cantarolando vez ou outra a canção: "É melhor ser alegre que ser triste", concorrendo com o ronco alto do motor.

Ao entrar numa clareira, estancou o veículo, ouvindo logo em seguida os protestos da esposa. Ajudou-a para sair do bug. Em segundos, puderam contemplar de cima da encosta relvada um mar incrivelmente azul, translúcido, debaixo do sol ameno. A praia era vigiada por duas ilhotas: o Morro da Viúva e o Morro do Leão.

Continuaram o resto da trilha a pé. Era estreita, com declives e cheia de pedras úmidas. Desceram com cuidado. Victor auxiliava a esposa e, quando possível, contemplava a paisagem de cair o queixo.

A mais de setenta metros da praia, várias estacas brancas fincadas na areia levavam um número e o nome TAMAR impressos. Eram marcações onde tartarugas depositavam seus ovos, para os biólogos acompanharem a eclosão e a proteção da espécie.

Quando chegaram à beira do mar, Victor notou um cação nadando muito próximo à praia, numa retenção natural de água cercada por arrecife. O peixe tentava escapar cada vez que uma onda invadia a área.

– É perigoso! Não vá – Bete exigiu do marido quando ele correu naquela direção. Mas ele mudou de ideia ao notar que o mar estava bravo.

Victor era um velho ecólogo aposentado e a muito custo abriu uma pousada no arquipélago de Noronha para aproveitar melhor a vida ao lado da esposa. Era um homem alto, a pele bronzeada pelo sol, os braços longos e a cabeça cheia de fios brancos. Sofria de uma doença de coluna, comum em pessoas de alta estatura. Descobriu, há mais de cinco anos, que era portador de hérnia de disco. Resolveu não optar pela cirurgia tradicional, que oferecia efeitos colaterais permanentes. Desde os sessenta anos, as dores na lombar o incomodavam com frequência e por isto buscava tratamentos alternativos. Caminhadas matinais sobre a areia o ajudavam. Victor fizera disso um hábito. Escolheu aquela praia como seu refúgio particular.

Juntou-se à esposa com os pés descalços na areia, o cheiro da maresia invadindo seu nariz.

– O que é aquela mancha preta se movendo no fim da praia? – a mulher perguntou. – Parece uma tartaruga, não acha?

– Droga! Eu não trouxe minha máquina – disse, chateado, com mão sobre a testa para quebrar a luz do sol.

– Eu lhe avisei. Se gosta tanto de tirar fotos de corais, algas e outras coisinhas nojentas devia ter trazido a máquina.

– É uma Nikon. Custou caro à beça. A maresia pode estragá-la. Vamos olhar mais de perto.

Victor apressou o passo. A esposa pediu que fosse com calma. Ele não se importou com o esforço. Sempre foi fanático pelo mundo natural. Participou de dezenas de excursões em vários lugares do Brasil e do Mundo. Foi membro associado de grupos como Greenpeace.

– Querido! É mesmo uma tartaruga – a mulher gritou, um pouco mais à frente que ele. – Meu Deus, como é linda!

Quando chegou perto do bicho, Victor percebeu que o animal era enorme, tinha um olhar esgazeado, a cabeça fazia um movimento contínuo, como se estivesse asfixiando.

– Coitadinha – a esposa lamentou. – Parece que está morrendo.

– Está tentando vomitar. Os turistas idiotas sujam as praias com sacos plásticos. Quando elas encontram essas coisas em alto-mar, engolem porque acham que são águas-vivas. Elas adoram águas-vivas! – explicou, enquanto tocava no casco e depois nas patas do animal, que se retraíram por impulso. – O plástico fica retido no estômago. Aí, as pobrezinhas ficam sem fome e morrem de desnutrição.

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