Prólogo- Isso é tão ruim?

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747 DC, Europa

Ele mexe nas prateleiras de pedra, retirando ingredientes, enquanto ela fala ao fundo.


Ele mal registra as palavras dela, ou mesmo o brilho do sol de fim de tarde, que tinge


o interior da casa de madeira. Seu foco está direcionado para o caldeirão borbulhante


no centro do cômodo.



- Você está me ouvindo, Balthazar?


- E tem como não ouvir? -ele pergunta revirando os olhos, mas ainda sem olhar para


ela.


- Abusado. Você devia tratar melhor a única pessoa que ainda se dispõe a falar com


você.


- Você é uma meretriz, Morgana. Para o povo do nosso "lindo e agradável" vilarejo


você é tão pecaminosa e desprezível quanto eu. Eles só te suportam por causa dos seus


"talentos".



Ele mistura o conteúdo de dois frascos, acrescenta um pó vermelho e o mexe com uma


vara de cobre. Dentro do caldeirão negro a mistura adquire uma coloração branco


leitosa.



- O que está preparando desta vez? -ela pergunta, olhando para o amigo com mais de


20cm de altura à mais que ela. Que não para quieto em um canto da casa.-


Outra feitiçaria para te levar para a fogueira?


- Provavelmente. -ele joga um pequeno ramo de folhas verdes no caldeirão fazendo


com que o líquido passe do branco para o roxo instantaneamente.- Acredito que


finalmente consegui, Morgana. Eu criei uma poção capaz de trazer meu irmão de volta


à vida.



Ouvindo aquilo ela fica sem reação por um momento. Seus olhos se perdem em


lembranças e então ela volta o olhar para o rosto do amigo.



- Balthazar, você...


- Estou falando sério? Sim. Fiquei louco? É possível. -ele ri levemente ao dar a última


resposta. Ficando sério logo em seguida.- Desde que ele te trouxe para a nossa casa


ainda criança, ferida e a beira da morte, nós cuidamos uns dos outros. Os três unidos


contra tudo. Se quiser ir embora, eu não vou te julgar, mas eu tenho que tentar. -Ele


retira a vara de cobre do caldeirão e vira as costas para ela- Espero que você entenda.



Ela passa a mão pelo cabelo ruivo e parece pensar naquilo que ele acabou de dizer.


Ela, que estava sentada em uma das bancadas até aquele momento, põe as mãos nos


joelhos, suspira e se adianta em direção a porta.



- Para onde vamos? -pergunta ela, o encarando.


************


Apos à chegada da noite, uma particularmente estrelada, algo do qual o


feiticeiro não gostou nem um pouco. Ambos vestiram mantos com


capuzes para chegar ao terreno do cemitério.



- Para que os capuzes?


- Estamos no cemitério, à noite. -diz ele após entrarem.- Prestes a roubar um cadáver.


As pessoas já sabem quem somos. Uma prostituta e um feiticeiro mouro em um


cemitério à noite? Acho que é melhor não correr o risco de sermos reconhecidos.



Eles andam pelo meio dos montes de terra que demarcam os túmulos. A maioria não


tem nada além de uma cruz tosca de madeira, mas alguns, poucos, possuem placas.


Pranchas de madeira identificando o morto, a maioria nobres ou comerciantes ricos,


mas também havia aqueles que morreram em batalha. Foi entre esses, que eles o encontraram: "Ramon Blackword, guerreiro". Simples, discreta, sutil, a placa fez ambos, em suas mentes, voltarem para quando estiveram ali pela primeira vez.



- É mais difícil do que eu pensei que seria.


- Pelo menos você se preparou para isso, Balthazar. O que fazemos agora?


- Você cava e me entrega a terra vinda de dentro da cova.



Ele acena e faz com que o caldeirão apareça ao seu lado, com um estalo as chamas se acenderem embaixo do recipiente de ferro negro e ele continua à mexer o líquido com


a vara de cobre recém conjurada.



- Tem certeza de que vai funcionar? -ela questiona, enquanto lhe entrega a terra.


- Fugir ainda é uma opção para você. -fala, enquanto acrescenta terra à mistura em ebulição. Seu rosto é tomado por um sorriso ao ver o líquido mudar do roxo para o laranja. Lança um olhar para a amiga- Última chance, Morg.


- Faz logo a sua parte.



Ele ergue os braços e começa a entoar um cântico em uma língua desconhecida. Relâmpagos negros saem das mãos dele, cortando os céus, a cova termina de se abrir sem que ninguém mexa nela e de suas profundezas os restos mortais de Ramon voam e mergulham no cadeirão



- Se morremos aqui... -Morgana, começa.


- Estaremos os três juntos novamente do mesmo jeito. -Balthazar, diz segurando a mão dela e olhando para o caldeirão- Isso é tão ruim assim?


- Não. -ela aperta a mão dele enquanto pronuncia aquela resposta.- Na verdade, não é não.



Uma luz começa a vir do caldeirão e se intensifica pouco a pouco até que não se enxerga mais nada.

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